5- HABILIDADE PARA DIFUNDIR A VERDADE
Muitos, orgulhosos de ter a coragem de dizer a verdade, contentes por a terem encontrado, porventura fatigados com o esforço necessário para lhe dar uma forma manejável, aguardam impacientemente que aqueles cujos interesses defendem a tomem em suas mãos e consideram desnecessário o uso de manhas e estratagemas para a difundir. Frequentemente, é assim que perdem todo o fruto do seu trabalho.
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Em todos os tempos, foi necessário recorrer a "truques" para espalhar a verdade, quando os poderosos se empenhavam em abafá-la e ocultá-la. Confúcio falsificou um velho calendário histórico nacional, apenas lhe alterando algumas palavras. Quando o texto dizia: "o senhor de Kun condenou à morte o filósofo Wan por ter dito frito e cozido", Confúcio substituía "condenou à morte" por "assassinou". Quando o texto dizia que o Imperador Fulano tinha sucumbido a um atentado, escrevia "foi executado". Com este processo, Confúcio abriu caminho a uma nova concepção da história.
Na nossa época, aquele que em vez de "povo", diz "população", e em lugar de “terra", fala de "latifúndio", evita já muitas mentiras, limpando as palavras da sua magia de pacotilha. A palavra "povo" exprime uma certa unidade e sugere interesses comuns; a "população" de um território tem interesses diferentes e opostos. Da mesma forma, aquele que fala em "terra" e evoca a visão pastoral e o perfume dos campos favorece as mentiras dos poderosos, porque não fala do preço do trabalho e das sementes, nem no lucro que vai parar aos bolsos dos ricaços das cidades e não aos dos camponeses que se matam a tornar fértil o "paraíso". "Latifúndio" é a expressão justa: torna a trapaça menos fácil.
Nos sítios onde reina a opressão, deve-se escolher, em vez de "disciplina", a palavra "obediência", já que mesmo sem amos e chefes a disciplina é possível, e caracteriza-se portanto por algo de mais nobre que a obediência. Do mesmo modo, "dignidade humana" vale mais do que "honra": com a primeira expressão o indivíduo não desaparece tão facilmente do campo visual; por outro lado, conhece-se de ginjeira o gênero de canalha que costuma apresentar-se para defender a honra de um povo, e com que prodigalidade os gordos desonrados distribuem "honrarias" pelos famélicos que os engordam.
Ao substituir avaliações inexatas de acontecimentos nacionais por notações exatas, o método de Confúcio ainda hoje é aplicável. Lénine, por exemplo, ameaçado pela polícia do czar, quis descrever a exploração e a opressão da ilha Sakalina pela burguesia russa. Substituiu "Rússia" por "Japão" e "Sakalina" por "Coreia". Os métodos da burguesia japonesa faziam lembrar a todos os leitores os métodos da burguesia russa em Sakalina, mas a brochura não foi proibida, porque o Japão era inimigo da Rússia. Muitas coisas que não podem ser ditas na Alemanha a propósito da Alemanha, podem sê-lo a propósito da Áustria. Há muitas maneiras de enganar um Estado vigilante.
Voltaire combateu a fé da Igreja nos milagres, escrevendo um poema libertino sobre a Donzela de Orleans, no qual são descritos os milagres que sem dúvida foram necessários para Joana d'Arc permanecer virgem no exército, na Corte e no meio dos frades.
Pela elegância do seu estilo e a descrição de aventuras galantes inspiradas na vida relaxada das classes dirigentes, levou estas a sacrificar uma religião que lhes fornecia os meios de levar essa vida dissoluta. Mais e melhor deu assim às suas obras a possibilidade de atingir por vias ilegais aqueles a quem eram destinadas. Os poderosos que Voltaire contava entre os seus leitores favoreciam ou toleravam a difusão dos livros proibidos, e desse modo sacrificavam a polícia que protegia os seus prazeres. E o grande Lucrécio sublinha expressamente que, para propagar o ateísmo epicurista confiava muito na beleza dos seus versos.
Não há dúvida de que um alto nível literário pode servir de salvo-conduto à expressão de uma ideia. Contudo, muitas vezes desperta suspeitas. Então, pode ser indicado baixá-lo intencionalmente. É o que acontece, por exemplo, quando sob a forma desprezada do romance policial, se introduz à socapa, em lugares discretos, a descrição dos males da sociedade. O grande Shakespeare baixou o seu nível por considerações bem mais fracas, quando tratou com uma voluntária ausência de vigor o discurso com que a mãe de Coriolano tentou travar o filho, que marchava sobre Roma: Shakespeare pretendia que Coriolano desistisse do seu projeto, não por causa de razões sólidas ou de uma emoção profunda, mas por uma certa fraqueza de caráter que o entregava aos seus velhos hábitos. Encontramos igualmente em Shakespeare um modelo de manhas na difusão da verdade: o discurso de Marco António perante o corpo de César, quando repete com insistência que Brutus, assassino de César, é um homem honrado, descrevendo ao mesmo tempo o seu ato, e a descrição do ato provoca mais impressão que a do autor.
Jonathan Swift propôs numa das suas obras o seguinte meio de garantir o bem-estar da Irlanda: meter em salmoura os filhos dos pobres e vendê-los como carniça no talho. Através de minuciosos cálculos, provava que se podem fazer grandes economias quando não se recua diante de nada. Swift armava voluntariamente em imbecil, defendendo uma maneira de pensar abominável e cuja ignomínia saltava aos olhos de todos. O leitor podia-se mostrar mais inteligente, ou pelo menos mais humano que Swift, sobretudo aquele que ainda não tinha pensado nas consequências decorrentes de certas concepções.
São consideradas baixas as atividades úteis aos que são mantidos no fundo da escala: a preocupação constante pela satisfação de necessidades; o desdém pelas honrarias com que procuram engodar os que defendem o país onde morrem de fome; a falta de confiança no chefe quando o chefe nos leva a todos à catástrofe; a falta de gosto pelo trabalho quando ele não alimenta o trabalhador; o protesto contra a obrigação de ter um comportamento de idiotas; a indiferença para com a família, quando de nada serve a gente interessar-se por ela. Os esfomeados são acusados de gulodice; os que não têm nada a defender, de cobardia; os que duvidam dos seus opressores, de duvidar da sua própria força; os que querem receber a justa paga pelo seu trabalho, de preguiça, etc.
Numa época como a nossa, os governos que conduzem as massas humanas à miséria, têm de evitar que nessa miséria se pense no governo, e por isso estão sempre a falar
RECAPITULAÇÃO
A grande verdade da nossa época (só seu conhecimento em nada nos faz avançar, mas sem ela não se pode alcançar nenhuma outra verdade importante) é que o nosso continente se afunda na barbárie porque nele se mantêm pela violência determinadas relações de propriedade dos meios de produção. De que serve escrever frases corajosas mostrando que é bárbaro o estado de coisas em que nos afundamos (o que é verdade), se a razão de termos caído nesse estado não se descortina com clareza? É nossa obrigação dizer que, se se tortura, é para manter as relações de propriedade. Claro que ao dizermos isso perdemos muitos amigos; aqueles que são contra a tortura porque julgam ser possível manter sem ela as relações de propriedade (o que é falso).
Devemos dizer a verdade sobre as condições bárbaras que reinam no nosso país a fim de tornar possível a ação que as fará desaparecer, isto é, que transformará as relações de propriedade.Devemos dizê-la aos que mais sofrem com as relações de propriedade e estão mais interessados na sua transformação, ou seja: aos operários e aos que podemos levar a aliarem-se com eles, por não serem proprietários dos meios de produção, embora associados aos lucros e benefícios da exploração de quem produz. E, é claro, devemos proceder com astúcia.
Devemos resolver em conjunto, e ao mesmo tempo, estas cinco dificuldades, já que não podemos procurar a verdade sobre condições bárbaras sem pensar nos que sofrem essas condições e estão dispostos a utilizar esse conhecimento. Além disso, temos de pensar em apresentar-lhes a verdade sob uma forma susceptível de se transformar numa arma nas suas mãos, e simultaneamente com a astúcia suficiente para que a operação não seja descoberta e impedida pelo inimigo.
São estas as virtudes exigidas ao escritor empenhado em dizer a verdade.
(*) Texto de 1934. Tradução de Ernesto Sampaio. Publicado no Diário de Lisboa de 25/Abr/82.
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