
Os lugares mais quentes do inferno são destinados aos que, em tempos de graves crises, mantêm-se neutros.
Dante Alighieri
Resistência, independência, autodeterminação!
Montanhas russas reunidas em círculos
Rodopiando em discussões extensas
Um cotidiano nada rotineiro
Aprisiona e liberta em horários e exaustões...
E o estar presente quase incomoda
O sentimento de dever borbulha nos ouvidos
As ações são impulsionadas por princípios
Que não cansam nem esmorecem
Ainda que o corpo deseje a inércia...
Claro, óbvio e inegável é
Que tal desejo absurdo
É meramente provisório, tempos de açúcar
Quando os encontros sobrepõem-se aos pensamentos
E as tempestades nos pegam sem varandas ou tetos.
Suspiro, retomando o ar deixado na última sala,
O fôlego ansioso por um balanço tranquilo.
Acontece que lá fora não parece haver trégua
Pois são máquinas as forças contrárias e malévolas...
Não suam, não dormem e não se intimidam
Ante o infinito amor que temos.
E esse amor, mesmo infinito,
Não sendo como eles, violento,
Não pode simplesmente detê-los,
precisa apaixoná-los...
Mas quem?
Que paixões? Rumo à que corações?
Quem pode dizer... quem pode ser...
São tantos, são invisíveis e constantes... são inimigos e futuros de esperança...
Porque se nossa força é o amor
E a força contrária o oposto (mas não totalmente, espero)
Não podemos ser como eles, pois perderemos...
Queremos (eu e quem mais?) que eles
Se apaixonem
E não que morram (só em momentos de ira).
Sim, sim, que enigma metálico enferrujado
Que incrustado de conchas em portos abandonados
Que eras trepadeiras em muros desmoronando...
Que irrespostas desconexas e sem nexo...
Acontece que por maior que seja a loucura do mundo
E a nossa, diante de tudo
Só não podemos parar.
Mas a natureza não diz que não podemos cansar.
Ao contrário, como cansa.
E nisso, do alto da montanha russa
Aquele frio estomacal tremula
E irrompe poros afora...
Suamos, frio.
Há calor também. Muito. É o próprio amor.
Uma total dicotomia paradoxal de estrelas que se chocam.
Sem uma lógica matemática exata e concisa...
Apenas a continuação interminável de utopias delirantes
Que perseguimos convictos da vitória da vida!
Numa militância que atravessa as madrugadas
Na ânsia milimétrica de invernos e primaveras
Tornados esfumaçados, tosses e desgastes
Visões em preto e branco de plástico
E odores bons e ruins...
Enfim.
É isso.
Então.
E ai?
O que resta é descansar na agitação
Agitar o cansaço
E seguir em frente, aberto para o abraço
Beijando todo o espaço
Tudo que há e é.
Carregando o amor não como um fardo
Nem a esperança como uma pedra entalada na garganta
Mas como asas, únicas formas de salvar-nos
Do abismo que se despedaça sob nossos pés
E nossas mãos
E nossas vidas
Para sermos verdadeiramente
E profundamente
De maneira completa
Plena
E apaixonada.
Explodiremos, é fato.
A explosão será indescritível, indiscriminada
Levará a todos.
Todos se perderão, mas já estavam perdidos.
Mas nos encontraremos, mais ainda
Todos serão finalmente apaixonados
Depois da explosão.
Depois que as paredes todas forem derrubadas
E as portas da alma arrombadas
Permitindo a união inimaginável
A Comunhão da Vida em uma só.
Fim. Início. Infinito. Círculo. Comum...(ismo).
Não será através da força
Mas do amor.
A revolta será espiritual
E as chamas arderão nas almas
Os gritos brotarão do espírito
E as mãos andarão dadas
Pés juntos, passos largos.
Desmoronarão de suas torres
Dos altos edifícios
Dos terraços rarefeitos
Das alturas da tolice
Do topo dos egoísmos
Do alto das ganâncias
Até o fundo do poço
De onde poderão ressurgir iguais
Horizontais
Humanos, reais
Sem autoridades
Sem banalidades
Sem formalidades
Sem burocracias
Sem hipertrofias
Sem infantarias
E sem ódio.
Quando o “mundo” cair,
Quem ainda houver
Terá a nova chance
De nascer.
Quando o “civilizado” ruir
Quem ainda houver
Terá a nova chance
De pensar.
Quando o “sistema” se destruir
Os que ainda houver
Terão a nova chance
De se unirem.
Quando o “muro” for derrubado
Os que ainda houver
Terão finalmente a chance
De se amarem.
Caio Maniero D’Auria é um enxadrista. Calculista. Paciente.
Insistente. Irritante, até. Graças a essas características, tornou-se,
aos 22 anos, o primeiro brasileiro dispensado do serviço militar
obrigatório por “razões políticas e filosóficas”. Na prática,
significa que ele foi dispensado sem nem precisar jurar à bandeira.
Para muitos, a formalidade é apenas um detalhe. Para ele, uma batalha
de quase cinco anos de duração em defesa da “liberdade”.
Todos os anos 1,6 milhão de jovens alistam-se e cerca de 100 mil são
incorporados ao Exército, à Marinha ou à Aeronáutica (em 2008 foram 80
mil), segundo o Ministério da Defesa. Desses, 95% declararam no
alistamento desejo de servir. Os que não queriam, foram convocados por
ter alguma habilidade necessária à unidade militar da região. “A
Estratégia Nacional de Defesa pretende alterar esse quadro, de modo a
que o serviço militar seja efetivamente obrigatório, e passe a
refletir o perfil social e geográfico da sociedade brasileira”,
anuncia o Ministério da Defesa, sem dar detalhes de como isso será
feito.
Por ora, a única exigência feita para os dispensados é uma pastosa
cerimônia de Juramento à Bandeira, tão esvaziada quanto a obrigação de
executar o Hino Nacional antes das partidas de futebol em São Paulo.
Ninguém reclama. Caio recusou-se.
Determinado a encontrar um meio válido de não jurar à bandeira,
entranhou-se nas leis militares. Telefonou para o Comando Militar do
Sudeste e soube que podia pedir para prestar um serviço alternativo e
que, por não haver convênio firmado, isso resultava na dispensa
automática. “Mas a secretária da Junta Militar me falou que só
Testemunhas de Jeová podiam alegar objeção de consciência. Ela me
mandou jurar à bandeira, mas eu estaria mentindo se jurasse dar a vida
pela nação, pois jamais faria isso”, diz, com um sorriso tímido de
quem mal deixou a adolescência.
De próprio punho, Caio redigiu uma “declaração de imperativo de
consciência”, e declarou-se anarquista. A Junta Militar exigiu a
declaração de uma associação anarquista confirmando o vínculo. Caio,
então, contatou mais de vinte organizações em busca de, como diz, uma
“carta de alforria”. Perdeu um ano nessa. “Os anarquistas brasileiros
não tiveram a coragem de colocar em prática o que tanto pregam. A
maioria está mais interessada em festinhas”, reclama. E pondera: “Acho
que eles tiveram medo de ser fichados pelo Exército”.
Desiludido, encontrou na internet a organização Movimento Humanista.
Enfim, sentiu que seria atendido. “Pregamos a não-violência e somos
contra o serviço militar obrigatório”, diz Paulo Genovese, coordenador
do grupo, que faz reuniões semanais e promove a Marcha Mundial pela
Paz e pela Não-Violência.
Diante de nova declaração de objeção de consciência, a Junta pediu
dados dos integrantes e o CNPJ da organização. Três meses depois, foi
preciso detalhar quais eram as incompatibilidades do movimento com o
serviço militar.
Era janeiro de 2008. “Passei noites em claro redigindo. Fui
pessoalmente entregar”, diz, satisfeito. Sustentou que os humanistas
colocam “o ser humano como valor central”, enquanto os militares devem
defender a pátria “mesmo com o sacrifício da própria vida”. E que o
“repúdio à violência” é incompatível com o “amor à profissão das armas”.
Quatro anos e oito meses após se alistar, Caio pegou seu Certificado
de Dispensa do Serviço Alternativo. Em 2008, apenas seis jovens foram
eximidos por objeção de consciência. Nos últimos cinco anos, 232. Mas
Caio foi pioneiro. “Nunca motivos políticos livraram alguém, o meu
processo é o número 001/08. Abri um precedente e agora tenho onde
lutar por minha liberdade e pela dos demais”, comemora ele, que é
analista de dados de telemarketing. Há anos quer prestar concurso
público. Agora pode.
Como é difícil dizer a verdade, já que por toda a parte a sufocam, dizê-la ou não parece à maioria uma simples questão de honestidade. Muitas pessoas pensam que quem diz a verdade só precisa de coragem. Esquecem a segunda dificuldade, a que consiste
Em primeiro lugar, já não é fácil descobrir qual verdade merece ser dita. Hoje, por exemplo, as grandes nações civilizadas vão soçobrando uma após outra na pior das barbáries diante dos olhos pasmados do universo.
Acresce ainda o facto de todos sabermos que a guerra interna, dispondo dos meios mais horríveis, pode transformar-se dum momento para o outro numa guerra exterior que só deixará um montão de escombros no sitio onde outrora havia o nosso continente. Esta é uma verdade que não admite dúvidas, mas é claro que existem outras verdades.
Por exemplo: não é falso que as cadeiras sirvam para a gente se sentar e que a chuva caia de cima para baixo. Muitos poetas escrevem verdades deste gênero. Assemelham-se a pintores que esboçassem naturezas mortas a bordo dum navio em risco de naufragar. A primeira dificuldade de que falamos não existe para eles, e contudo têm a consciência tranquila. "Esgalham" o quadro num desprezo soberano pelos poderosos, mas também sem se deixarem impressionar pelos gritos das vítimas.
O absurdo do seu comportamento engendra neles um "profundo" pessimismo que se vende bem; os outros é que têm motivos para se sentirem pessimistas ao verem o modo como esses mestres se vendem. Já nem sequer é fácil reconhecer que as suas verdades dizem respeito ao destino das cadeiras e ao sentido da chuva: essas verdades soam normalmente de outra maneira, como se estivessem relacionadas com coisas essenciais, pois o trabalho do artista consiste justamente em dar um ar de importância aos temas de que trata.
Só olhando os quadros de muito perto é que podemos discernir a simplicidade do que dizem: "Uma cadeira é uma cadeira" e "Ninguém pode impedir a chuva de cair de cima para baixo". As pessoas não encontram ali a verdade que merece a pena ser dita. Alguns se consagram verdadeiramente às tarefas mais urgentes, sem medo aos poderosos ou á pobreza, e, no entanto não conseguem encontrar a verdade. Faltam-lhe conhecimentos. As velhas superstições não os largam, assim como os preconceitos ilustres que o passado frequentemente revestiu de uma forma bela. Acham o mundo complicado em demasia, não conhecem os dados nem distinguem as relações.
A honestidade não basta; são precisos conhecimentos que se podem adquirir e métodos que se podem aprender. Todos os que escrevem sobre as complicações desta época e sobre as transformações que nela ocorrem necessitam de conhecer a dialética materialista, a economia e a história. Estes conhecimentos podem adquirir-se nos livros e através da aprendizagem prática, por mínima que seja a vontade necessária. Muitas verdades podem ser encontradas com a ajuda de meios bastante simples, através de fragmentos de verdades ou dos dados que conduzem à sua descoberta.
Quando se quer procurar, é conveniente ter-se um método, mas também se pode encontrar sem método e até sem procura. Contudo, através dos diversos modos como o acaso se exprime, não se pode esperar a representação da verdade que permita aos homens saber como devem agir. As pessoas que só se empenham em anotar os fatos insignificantes são incapazes de tornar manejáveis as coisas deste mundo. O objetivo da verdade é uno e indivisível. As pessoas que apenas são capazes de dizer generalidades sobre a verdade não estão à altura dessa obrigação.
Se alguém está pronto a dizer a verdade e é capaz de a reconhecer, ainda tem de vencer três dificuldades.
O que torna imperiosa a necessidade de dizer a verdade são as consequências que isso implica no que diz respeito à conduta prática. Como exemplo de verdade inconsequente ou de que se poderão tirar consequências falsas, tomemos o conceito largamente difundido, segundo o qual em certos países reina um estado de coisas nefasto, resultante da barbárie. Para esta concepção, o fascismo é uma vaga de barbárie que alagou certos países com a violência de um fenómeno natural.
Os que assim pensam, entendem o fascismo como um novo movimento, uma terceira força justaposta ao capitalismo e ao socialismo (e que os domina). Para quem partilha esta opinião, não só o movimento socialista, mas também o capitalismo teriam podido, se não fosse o fascismo, continuar a existir, etc. Naturalmente que se trata de uma afirmação fascista, de uma capitulação perante o fascismo. O fascismo é uma fase histórica na qual o capitalismo entrou; por consequência, algo de novo e ao mesmo tempo de velho. Nos países fascistas, a existência do capitalismo assume a forma do fascismo, e não é possível combater o fascismo senão enquanto capitalismo, senão enquanto forma mais nua, mais cínica, mais opressora e mais mentirosa do capitalismo.
Como se poderá dizer a verdade sobre o fascismo que se recusa, se quem diz essa verdade se abstêm de falar contra o capitalismo que engendra o fascismo? Qual será o alcance prático dessa verdade? Aqueles que estão contra o fascismo sem estar contra o capitalismo, que choramingam sobre a barbárie causada pela barbárie, assemelham-se a pessoas que querem receber a sua fatia de assado de vitela, mas não querem que se mate a vitela. Querem comer vitela, mas não querem ver sangue. Para ficarem contentes, basta que o magarefe lave as mãos antes de servir a carne. Não são contra as relações de propriedade que produzem a barbárie, mas são contra a barbárie.
As recriminações contra as medidas bárbaras podem ter uma eficácia episódica, enquanto os auditores acreditarem que semelhantes medidas não são possíveis na sociedade onde vivem. Certos países gozam do raro privilégio de manter relações de propriedade capitalistas por processos aparentemente menos violentos. A democracia ainda lhes presta os serviços que noutras partes do mundo só podem ser prestados mediante o recurso à violência, quer dizer, aí a democracia chega para garantir a propriedade privada dos meios de produção. O monopólio das fábricas, das minas, dos latifúndios gera em toda a parte condições bárbaras; digamos que em alguns sítios a democracia torna essas condições menos visíveis. A barbárie torna-se visível logo que o monopólio já só pode encontrar protecção na violência nua.
Certas nações que conseguem preservar os monopólios bárbaros sem renunciar às garantias formais do direito, nem a comodidades como a arte, a filosofia, a literatura, acolhem carinhosamente os hóspedes cujos discursos procuram desculpar o seu país natal de ter renunciado a semelhantes confortos: tudo isso lhes será útil nas guerras vindouras. É licito dizer-se que reconheceram a verdade, aqueles que reclamam a torto e a direito uma luta sem quartel contra a Alemanha, apresentada como verdadeira pátria do mal da nossa época, sucursal do inferno, caverna do Anticristo? Desses, não será exagerado pensar que não passam de impotentes e nefastos imbecis, já que a conclusão do seu blá-blá-blá aponta para a destruição desse pais inteiro e de todos os seus habitantes (o gás asfixiante, quando mata, não escolhe os culpados).
O homem frívolo, que não conhece a verdade, exprime-se através de generalidades, em termos nobres e imprecisos. Encanta-o perorar sobre "os" alemães ou lançar-se em grandes tiradas sobre "o" Mal, mas a verdade é que nós, aqueles a quem o homem frívolo fala, ficamos embaraçados, sem saber que fazer de semelhantes ditames. Afinal de contas, o nosso homem decidiu deixar de ser alemão? E lá por ele ser bom, o inferno vai desaparecer? São desta espécie as grandes frases sobre a barbárie. Para os seus autores, a barbárie vem da barbárie e desaparece graças à educação moral que vem da educação. Que miséria a destas generalidades, que não visam qualquer aplicação pratica e, no fundo, não se dirigem a ninguém.
Não nos admiremos que se digam de esquerda, "mas" democratas, os que só conseguem elevar-se a tão fracas e improfícuas verdades. A "esquerda democrática" é outra destas generalidades-álibís onde correm a acoitar-se as pessoas inconsequentes, isto é, os incapazes de viver até as últimas consequências as verdades que quer a esquerda, quer a democracia contêm. Reclamar-se alguém da "esquerda democrática" significa, em termos práticos, que pertence ao grupo dos ineptos para revolucionar ou conservar as coisas, ao clã dos generalistas da verdade.
Não é a mim, fugido da Alemanha com a roupa que tinha no corpo, que me vão apresentar o fascismo como uma espécie de força motriz natural impossível de dominar. A escuridade dessas descrições esconde as verdadeiras forças que produzem as catástrofes. Um pouco de luz, e logo se vê que são homens a causa das catástrofes. Pois é, amigos: vivemos num tempo em que o homem é o destino do homem.
O fascismo não é uma calamidade natural, que se possa compreender a partir da "natureza" humana. Mas mesmo confrontados com catástrofes naturais, há um modo de descrevê-las digno do homem, um modo que apela para as suas qualidades combativas. O cronista de grandes catástrofes como o fascismo e a guerra (que não são catástrofes naturais) deve elaborar uma verdade praticável, mostrar as calamidades que os que possuem os meios de produção infligem às massas imensas dos que trabalham e não os possuem.
Se se pretende dizer eficazmente a verdade sobre um mau estado de coisas, é preciso dizê-la de maneira que permita reconhecer as suas causas evitáveis. Uma vez reconhecidas as causas evitáveis, o mau estado de coisas pode ser combatido.
4 - DISCERNIMENTO SUFICIENTE PARA ESCOLHER OS QUE TORNARÃO A VERDADE EFICAZ
Tirando ao escritor a preocupação pelo destino dos seus textos, as usanças seculares do comércio da coisa escrita no mercado das opiniões deram-lhe a impressão de que a sua missão terminava logo que o intermediário, cliente ou editor, se encarregava de transmitir aos outros a obra acabada. O escritor pensava: falo e ouve-me quem me quiser ouvir. Na verdade, ele falava e quem podia pagar ouvia-o. Nem todos ouviam as suas palavras, e os que as ouviam não estavam dispostos a ouvir tudo o que se lhes dizia.
Tem-se falado muito desta questão, mas mesmo assim ainda não chega o que se tem dito: limitar-me-ei aqui a acentuar que "escrever a alguém" tornou-se pura e simplesmente "escrever". Ora não se pode escrever a verdade e basta: é absolutamente necessário escrevê-la a "alguém" que possa tirar partido dela. O conhecimento da verdade é um processo comum aos que lêem e aos que escrevem. Para dizer boas coisas, é preciso ouvir bem e ouvir boas coisas. A verdade deve ser pesada por quem a diz e por quem a ouve. E para nós que escrevemos, é essencial saber a quem a dizemos e quem no-la diz.
Devemos dizer a verdade sobre um mau estado de coisas àqueles que o consideram o pior estado de coisas, e é desses que devemos aprender a verdade. Devemos não só dirigir-nos às pessoas que têm uma certa opinião, mas também aos que ainda a não têm e deviam tê-la, ditada pela sua própria situação. Os nossos auditores transformam-se continuamente! Até se pode falar com os próprios carrascos quando o prémio dos enforcamentos deixa de ser pago pontualmente ou o perigo de estar com os assassinos se torna muito grande.
Os camponeses da Baviera não costumam querer nada com revoluções, mas quando as guerras duram demais e os seus filhos, no regresso, não arranjam trabalho nas quintas, tem sido possível ganhá-los para a revolução.
Para quem escreve, é importante saber encontrar o tom da verdade. Um acento suave, lamentoso, de quem é incapaz de fazer mal a uma mosca, não serve. Quem, estando na miséria, ouve tais lamúrias, sente-se ainda mais miserável. Em nada o anima a cantilena dos que, não sendo seus inimigos, não são certamente seus companheiros de luta. A verdade é guerreira, não combate só a mentira, mas certos homens bem determinados que a propagam.
Em todos os tempos, foi necessário recorrer a "truques" para espalhar a verdade, quando os poderosos se empenhavam em abafá-la e ocultá-la. Confúcio falsificou um velho calendário histórico nacional, apenas lhe alterando algumas palavras. Quando o texto dizia: "o senhor de Kun condenou à morte o filósofo Wan por ter dito frito e cozido", Confúcio substituía "condenou à morte" por "assassinou". Quando o texto dizia que o Imperador Fulano tinha sucumbido a um atentado, escrevia "foi executado". Com este processo, Confúcio abriu caminho a uma nova concepção da história.
Na nossa época, aquele que em vez de "povo", diz "população", e em lugar de “terra", fala de "latifúndio", evita já muitas mentiras, limpando as palavras da sua magia de pacotilha. A palavra "povo" exprime uma certa unidade e sugere interesses comuns; a "população" de um território tem interesses diferentes e opostos. Da mesma forma, aquele que fala em "terra" e evoca a visão pastoral e o perfume dos campos favorece as mentiras dos poderosos, porque não fala do preço do trabalho e das sementes, nem no lucro que vai parar aos bolsos dos ricaços das cidades e não aos dos camponeses que se matam a tornar fértil o "paraíso". "Latifúndio" é a expressão justa: torna a trapaça menos fácil.
Nos sítios onde reina a opressão, deve-se escolher, em vez de "disciplina", a palavra "obediência", já que mesmo sem amos e chefes a disciplina é possível, e caracteriza-se portanto por algo de mais nobre que a obediência. Do mesmo modo, "dignidade humana" vale mais do que "honra": com a primeira expressão o indivíduo não desaparece tão facilmente do campo visual; por outro lado, conhece-se de ginjeira o gênero de canalha que costuma apresentar-se para defender a honra de um povo, e com que prodigalidade os gordos desonrados distribuem "honrarias" pelos famélicos que os engordam.
Ao substituir avaliações inexatas de acontecimentos nacionais por notações exatas, o método de Confúcio ainda hoje é aplicável. Lénine, por exemplo, ameaçado pela polícia do czar, quis descrever a exploração e a opressão da ilha Sakalina pela burguesia russa. Substituiu "Rússia" por "Japão" e "Sakalina" por "Coreia". Os métodos da burguesia japonesa faziam lembrar a todos os leitores os métodos da burguesia russa em Sakalina, mas a brochura não foi proibida, porque o Japão era inimigo da Rússia. Muitas coisas que não podem ser ditas na Alemanha a propósito da Alemanha, podem sê-lo a propósito da Áustria. Há muitas maneiras de enganar um Estado vigilante.
Voltaire combateu a fé da Igreja nos milagres, escrevendo um poema libertino sobre a Donzela de Orleans, no qual são descritos os milagres que sem dúvida foram necessários para Joana d'Arc permanecer virgem no exército, na Corte e no meio dos frades.
Pela elegância do seu estilo e a descrição de aventuras galantes inspiradas na vida relaxada das classes dirigentes, levou estas a sacrificar uma religião que lhes fornecia os meios de levar essa vida dissoluta. Mais e melhor deu assim às suas obras a possibilidade de atingir por vias ilegais aqueles a quem eram destinadas. Os poderosos que Voltaire contava entre os seus leitores favoreciam ou toleravam a difusão dos livros proibidos, e desse modo sacrificavam a polícia que protegia os seus prazeres. E o grande Lucrécio sublinha expressamente que, para propagar o ateísmo epicurista confiava muito na beleza dos seus versos.
Não há dúvida de que um alto nível literário pode servir de salvo-conduto à expressão de uma ideia. Contudo, muitas vezes desperta suspeitas. Então, pode ser indicado baixá-lo intencionalmente. É o que acontece, por exemplo, quando sob a forma desprezada do romance policial, se introduz à socapa, em lugares discretos, a descrição dos males da sociedade. O grande Shakespeare baixou o seu nível por considerações bem mais fracas, quando tratou com uma voluntária ausência de vigor o discurso com que a mãe de Coriolano tentou travar o filho, que marchava sobre Roma: Shakespeare pretendia que Coriolano desistisse do seu projeto, não por causa de razões sólidas ou de uma emoção profunda, mas por uma certa fraqueza de caráter que o entregava aos seus velhos hábitos. Encontramos igualmente em Shakespeare um modelo de manhas na difusão da verdade: o discurso de Marco António perante o corpo de César, quando repete com insistência que Brutus, assassino de César, é um homem honrado, descrevendo ao mesmo tempo o seu ato, e a descrição do ato provoca mais impressão que a do autor.
Jonathan Swift propôs numa das suas obras o seguinte meio de garantir o bem-estar da Irlanda: meter em salmoura os filhos dos pobres e vendê-los como carniça no talho. Através de minuciosos cálculos, provava que se podem fazer grandes economias quando não se recua diante de nada. Swift armava voluntariamente em imbecil, defendendo uma maneira de pensar abominável e cuja ignomínia saltava aos olhos de todos. O leitor podia-se mostrar mais inteligente, ou pelo menos mais humano que Swift, sobretudo aquele que ainda não tinha pensado nas consequências decorrentes de certas concepções.
São consideradas baixas as atividades úteis aos que são mantidos no fundo da escala: a preocupação constante pela satisfação de necessidades; o desdém pelas honrarias com que procuram engodar os que defendem o país onde morrem de fome; a falta de confiança no chefe quando o chefe nos leva a todos à catástrofe; a falta de gosto pelo trabalho quando ele não alimenta o trabalhador; o protesto contra a obrigação de ter um comportamento de idiotas; a indiferença para com a família, quando de nada serve a gente interessar-se por ela. Os esfomeados são acusados de gulodice; os que não têm nada a defender, de cobardia; os que duvidam dos seus opressores, de duvidar da sua própria força; os que querem receber a justa paga pelo seu trabalho, de preguiça, etc.
Numa época como a nossa, os governos que conduzem as massas humanas à miséria, têm de evitar que nessa miséria se pense no governo, e por isso estão sempre a falar
RECAPITULAÇÃO
A grande verdade da nossa época (só seu conhecimento em nada nos faz avançar, mas sem ela não se pode alcançar nenhuma outra verdade importante) é que o nosso continente se afunda na barbárie porque nele se mantêm pela violência determinadas relações de propriedade dos meios de produção. De que serve escrever frases corajosas mostrando que é bárbaro o estado de coisas em que nos afundamos (o que é verdade), se a razão de termos caído nesse estado não se descortina com clareza? É nossa obrigação dizer que, se se tortura, é para manter as relações de propriedade. Claro que ao dizermos isso perdemos muitos amigos; aqueles que são contra a tortura porque julgam ser possível manter sem ela as relações de propriedade (o que é falso).
Devemos dizer a verdade sobre as condições bárbaras que reinam no nosso país a fim de tornar possível a ação que as fará desaparecer, isto é, que transformará as relações de propriedade.Devemos dizê-la aos que mais sofrem com as relações de propriedade e estão mais interessados na sua transformação, ou seja: aos operários e aos que podemos levar a aliarem-se com eles, por não serem proprietários dos meios de produção, embora associados aos lucros e benefícios da exploração de quem produz. E, é claro, devemos proceder com astúcia.
Devemos resolver em conjunto, e ao mesmo tempo, estas cinco dificuldades, já que não podemos procurar a verdade sobre condições bárbaras sem pensar nos que sofrem essas condições e estão dispostos a utilizar esse conhecimento. Além disso, temos de pensar em apresentar-lhes a verdade sob uma forma susceptível de se transformar numa arma nas suas mãos, e simultaneamente com a astúcia suficiente para que a operação não seja descoberta e impedida pelo inimigo.
São estas as virtudes exigidas ao escritor empenhado em dizer a verdade.
(*) Texto de 1934. Tradução de Ernesto Sampaio. Publicado no Diário de Lisboa de 25/Abr/82.
O sangue da América Latina, sagrando por nossas veias... não podemos esquecer quem somos, nem que nosso destino é alcançar a justiça!