sexta-feira, 19 de junho de 2009

Você não tem o direito de não se importar com os que estão morrendo...


Os lugares mais quentes do inferno são destinados aos que, em tempos de graves crises, mantêm-se neutros.

Dante Alighieri

terça-feira, 16 de junho de 2009

Nunca diga - isso é natural - para que nada passe a ser imutável.


Nós vos pedimos com insistência:
Nunca digam - Isso é natural -
diante dos acontecimentos de cada dia.
Numa época em que reina a confusão,
em que escorre o sangue,
em que se ordena a desordem,
em que o arbítrio tem força de lei,
em que a humanidade se desumaniza....
Não digam nunca - Isso é natural! -
Para que nada passe a ser imutável.

Eu peço com insistência
Não diga nunca - Isso é natural -

Sob o familiar,
Descubra o insólito,
Sob o cotidiano, desvele o inexplicável.

Que tudo o que é considerado habitual
Provoque inquietação,
Na regra, descubra o abuso,
E sempre que o abuso for encontrado,
Encontre o remédio.


Bertolt Brecht



Se alguém diz que nada pode ser feito, "sempre foi assim e sempre será", que não adianta mexer um dedo para mudar, podes ter certeza, você "alguém", que você é tão responsável pelo crime quanto os criminosos, porque cada vez que proferes tais palavras, você aperta a corda da forca da injustiça, ao invés de roê-la e cortá-la, cada vez que se negas a mover-se rumo à mudança, à humanização, à humanidade, à paz, ao outro, és tão responsável e o sangue corre por suas mãos, ou melhor, por sua boca e coração, que se negaram a dizer uma palavra de protesto e a sentir uma gota de revolta.
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Mas eu continuo pedindo com insistência - Nunca diga que "sempre foi" e, principalmente, "sempre será". Porque só será enquanto quisermos, e se assim é, é porque ainda queremos.

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Que não permitamos mais que em nosso querer se encontre a injustiça, a violência e a morte, o egoísmo, a ganância e a vaidade, a indiferença, a passividade, o silêncio.







"Ver um crime com calma, é cometê-lo"

José Martí

Mas ai já era tarde...

Primeiro levaram os negros,
Mas não me importei com isso,
Eu não era negro.

Em seguida levaram alguns operários,
Mas não me importei com isso,
Eu também não era operário.

Depois prenderam os miseráveis,
Mas não me importei com isso,
Porque eu não sou miserável.

Depois agarraram uns desempregados,
Mas como tenho meu emprego,
Também não me importei.

Agora estão me levando.
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém,
Ninguém se importa comigo.

Bertolt Brecht






E indiferentes, sozinhos, estamos indefesos ante os desmandos, as violências, os arbítrios... ninguém poderá se importar conosco... terão todos sido levados, arrastados... cada vez mais sozinhos... Como ficará este mundo? Até quando se manterá a "ordem" (que esconde o caos social)? Será que a mesma polícia que oprime os mais fracos, os pobres, os insurgentes, não se voltará contra você, quando você não estiver mais satisfeito?...

Você está realmente satisfeito com nossa realidade? Você consegue passar por um miserável e se sentir satisfeito? Tua vida te satisfaz? Teus sonhos te satisfazem? Teus amores, tuas experiências têm algum sentido quando contrastadas com a violência, o sangue e a crueldade do mundo?...

Quando nos levarem, já será tarde.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Acordando


"Visão sem ação não passa de um sonho.
..Ação sem visão é só um passatempo.
..Visão com ação pode mudar o mundo"

Barker

segunda-feira, 25 de maio de 2009

É o amor...


Canção

O peso do mundo
.....é o amor.
Sob o fardo
.....da solidão,

sob o fardo
.....da insatisfação.

.....o peso
o peso que carregamos
.....é o amor.

Quem poderia negá-lo?
.....Em sonhos
nos toca
.....o corpo,
em pensamentos
.....constrói
um milagre,
.....na imaginação
aflige-se
.....até tornar-se
huamano -

sai para fora do coração
.....ardendo de pureza -
pois o fardo da vida
.....é o amor,

mas nós carregamos o peso
.....cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
.....finalmente
temos que descansar nos braços
.....do amor.

Nenhum descanso
.....sem amor,
nenhum sono
.....sem sonhos
de amor -
.....quer seteja louco ou frio,
obcecado por anjos
.....ou por máquinas,
o último desejo
.....é o amor
- não pode ser amargo
.....não pode ser negado
não pode ser contido
.....quando negado:

o peso é demasiado.

- deve dar-se
sem nada de volta
.....assim como o pensamento
é dado
.....na solidão
em toda a excelência
.....do seu excesso.

Os corpos quentes
.....brilham juntos
na escuridão,
.....a mão se move
para o centro
.....da carne,
a pele treme
.....na felicidade
e a alma sobe
.....feliz até o olho -

sim, sim
.....é isso que
eu queria,
.....eu sempre quis,
eu sempre quis
.....voltar
ao corpo
.....em que nasci.

Allen Ginsberg

Montanhas russas reunidas em círculos...


Profecias...
Montanhas russas reunidas em círculos


Montanhas russas reunidas em círculos
Rodopiando em discussões extensas
Um cotidiano nada rotineiro
Aprisiona e liberta em horários e exaustões...

E o estar presente quase incomoda
O sentimento de dever borbulha nos ouvidos
As ações são impulsionadas por princípios
Que não cansam nem esmorecem
Ainda que o corpo deseje a inércia...

Claro, óbvio e inegável é
Que tal desejo absurdo
É meramente provisório, tempos de açúcar
Quando os encontros sobrepõem-se aos pensamentos
E as tempestades nos pegam sem varandas ou tetos.

Suspiro, retomando o ar deixado na última sala,
O fôlego ansioso por um balanço tranquilo.
Acontece que lá fora não parece haver trégua
Pois são máquinas as forças contrárias e malévolas...

Não suam, não dormem e não se intimidam
Ante o infinito amor que temos.
E esse amor, mesmo infinito,
Não sendo como eles, violento,
Não pode simplesmente detê-los,
precisa apaixoná-los...

Mas quem?
Que paixões? Rumo à que corações?
Quem pode dizer... quem pode ser...
São tantos, são invisíveis e constantes... são inimigos e futuros de esperança...
Porque se nossa força é o amor
E a força contrária o oposto (mas não totalmente, espero)
Não podemos ser como eles, pois perderemos...
Queremos (eu e quem mais?) que eles
Se apaixonem
E não que morram (só em momentos de ira).

Sim, sim, que enigma metálico enferrujado
Que incrustado de conchas em portos abandonados
Que eras trepadeiras em muros desmoronando...
Que irrespostas desconexas e sem nexo...

Acontece que por maior que seja a loucura do mundo
E a nossa, diante de tudo
Só não podemos parar.
Mas a natureza não diz que não podemos cansar.
Ao contrário, como cansa.

E nisso, do alto da montanha russa
Aquele frio estomacal tremula
E irrompe poros afora...
Suamos, frio.

Há calor também. Muito. É o próprio amor.
Uma total dicotomia paradoxal de estrelas que se chocam.
Sem uma lógica matemática exata e concisa...
Apenas a continuação interminável de utopias delirantes
Que perseguimos convictos da vitória da vida!

Numa militância que atravessa as madrugadas
Na ânsia milimétrica de invernos e primaveras
Tornados esfumaçados, tosses e desgastes
Visões em preto e branco de plástico
E odores bons e ruins...


Enfim.

É isso.

Então.

E ai?

O que resta é descansar na agitação

Agitar o cansaço

E seguir em frente, aberto para o abraço

Beijando todo o espaço

Tudo que há e é.

Carregando o amor não como um fardo

Nem a esperança como uma pedra entalada na garganta

Mas como asas, únicas formas de salvar-nos

Do abismo que se despedaça sob nossos pés

E nossas mãos

E nossas vidas


Para sermos verdadeiramente

E profundamente

De maneira completa

Plena

E apaixonada.


Explodiremos, é fato.

A explosão será indescritível, indiscriminada

Levará a todos.

Todos se perderão, mas já estavam perdidos.

Mas nos encontraremos, mais ainda

Todos serão finalmente apaixonados

Depois da explosão.

Depois que as paredes todas forem derrubadas

E as portas da alma arrombadas

Permitindo a união inimaginável

A Comunhão da Vida em uma só.


Fim. Início. Infinito. Círculo. Comum...(ismo).


Não será através da força

Mas do amor.

A revolta será espiritual

E as chamas arderão nas almas

Os gritos brotarão do espírito

E as mãos andarão dadas

Pés juntos, passos largos.


Desmoronarão de suas torres

Dos altos edifícios

Dos terraços rarefeitos

Das alturas da tolice

Do topo dos egoísmos

Do alto das ganâncias

Até o fundo do poço

De onde poderão ressurgir iguais

Horizontais

Humanos, reais

Sem autoridades

Sem banalidades

Sem formalidades

Sem burocracias

Sem hipertrofias

Sem infantarias

E sem ódio.


Quando o “mundo” cair,

Quem ainda houver

Terá a nova chance

De nascer.


Quando o “civilizado” ruir

Quem ainda houver

Terá a nova chance

De pensar.


Quando o “sistema” se destruir

Os que ainda houver

Terão a nova chance

De se unirem.


Quando o “muro” for derrubado

Os que ainda houver

Terão finalmente a chance

De se amarem.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Dispensado por motivo de consciência!

(A única função do exército é monopolizar - junto à polícia - a violência e assassinar quando necessário! - Abaixo ao serviço militar! Boicote às Forças Armadas, assassinos e opressores! A Autoridade do Estado é imposta à custo de nossoas vidas ameaçadas. Ninguém tem esse direito e precisamos impedi-los!)



Caio Maniero D’Auria é um enxadrista. Calculista. Paciente.
Insistente. Irritante, até. Graças a essas características, tornou-se,
aos 22 anos, o primeiro brasileiro dispensado do serviço militar
obrigatório por “razões políticas e filosóficas”. Na prática,
significa que ele foi dispensado sem nem precisar jurar à bandeira.
Para muitos, a formalidade é apenas um detalhe. Para ele, uma batalha
de quase cinco anos de duração em defesa da “liberdade”.

Todos os anos 1,6 milhão de jovens alistam-se e cerca de 100 mil são
incorporados ao Exército, à Marinha ou à Aeronáutica (em 2008 foram 80
mil), segundo o Ministério da Defesa. Desses, 95% declararam no
alistamento desejo de servir. Os que não queriam, foram convocados por
ter alguma habilidade necessária à unidade militar da região. “A
Estratégia Nacional de Defesa pretende alterar esse quadro, de modo a
que o serviço militar seja efetivamente obrigatório, e passe a
refletir o perfil social e geográfico da sociedade brasileira”,
anuncia o Ministério da Defesa, sem dar detalhes de como isso será
feito.

Por ora, a única exigência feita para os dispensados é uma pastosa
cerimônia de Juramento à Bandeira, tão esvaziada quanto a obrigação de
executar o Hino Nacional antes das partidas de futebol em São Paulo.
Ninguém reclama. Caio recusou-se.

Determinado a encontrar um meio válido de não jurar à bandeira,
entranhou-se nas leis militares. Telefonou para o Comando Militar do
Sudeste e soube que podia pedir para prestar um serviço alternativo e
que, por não haver convênio firmado, isso resultava na dispensa
automática. “Mas a secretária da Junta Militar me falou que só
Testemunhas de Jeová podiam alegar objeção de consciência. Ela me
mandou jurar à bandeira, mas eu estaria mentindo se jurasse dar a vida
pela nação, pois jamais faria isso”, diz, com um sorriso tímido de
quem mal deixou a adolescência.

De próprio punho, Caio redigiu uma “declaração de imperativo de
consciência”, e declarou-se anarquista. A Junta Militar exigiu a
declaração de uma associação anarquista confirmando o vínculo. Caio,
então, contatou mais de vinte organizações em busca de, como diz, uma
“carta de alforria”. Perdeu um ano nessa. “Os anarquistas brasileiros
não tiveram a coragem de colocar em prática o que tanto pregam. A
maioria está mais interessada em festinhas”, reclama. E pondera: “Acho
que eles tiveram medo de ser fichados pelo Exército”.

Desiludido, encontrou na internet a organização Movimento Humanista.
Enfim, sentiu que seria atendido. “Pregamos a não-violência e somos
contra o serviço militar obrigatório”, diz Paulo Genovese, coordenador
do grupo, que faz reuniões semanais e promove a Marcha Mundial pela
Paz e pela Não-Violência.

Diante de nova declaração de objeção de consciência, a Junta pediu
dados dos integrantes e o CNPJ da organização. Três meses depois, foi
preciso detalhar quais eram as incompatibilidades do movimento com o
serviço militar.

Era janeiro de 2008. “Passei noites em claro redigindo. Fui
pessoalmente entregar”, diz, satisfeito. Sustentou que os humanistas
colocam “o ser humano como valor central”, enquanto os militares devem
defender a pátria “mesmo com o sacrifício da própria vida”. E que o
“repúdio à violência” é incompatível com o “amor à profissão das armas”.

Quatro anos e oito meses após se alistar, Caio pegou seu Certificado
de Dispensa do Serviço Alternativo. Em 2008, apenas seis jovens foram
eximidos por objeção de consciência. Nos últimos cinco anos, 232. Mas
Caio foi pioneiro. “Nunca motivos políticos livraram alguém, o meu
processo é o número 001/08. Abri um precedente e agora tenho onde
lutar por minha liberdade e pela dos demais”, comemora ele, que é
analista de dados de telemarketing. Há anos quer prestar concurso
público. Agora pode.

quinta-feira, 5 de março de 2009

As 5 dificuldades em escrever a verdade - parte 1 - Bertolt Brecht


"Num momento em que generalidades e obviedades são ditas com ares de gravidade, de denúncia séria; em que os meios de comunicação das classes dominantes procuram reescrever sua própria estória, assumindo ares progressistas e de atenção às mazelas que afligem as camadas mais pobres da população; num momento em que alguns aparentam preocupação com o estado de coisas, com a barbárie, que o capitalismo, o imperialismo engendra no país e no mundo – e tudo isso fazem sem que permitam que se reconheçam suas causas evitáveis e como superá-las, é muito oportuno e estimulante o texto de Brecht."


As cinco dificuldades para escrever a verdade
Bertold Brecht


Hoje, o escritor que deseje combater a mentira e a ignorância tem de lutar, pelo menos, contra cinco dificuldades. É-lhe necessária a coragem de dizer a verdade, numa altura em que por toda a parte se empenham em sufocá-la; a inteligência de a reconhecer, quando por toda a parte a ocultam; a arte de a tornar manejável como uma arma; o discernimento suficiente para escolher aqueles em cujas mãos ela se tornará eficaz; finalmente, precisa de ter habilidade para difundir entre eles. Estas dificuldades são grandes para os que escrevem sob o jugo do fascismo; aqueles que fugiram ou foram expulsos também sentem o peso delas; e até os que escrevem num regime de liberdades burguesas não estão livres da sua ação.


1- A CORAGEM DE DIZER A VERDADE


É evidente que o escritor deve dizer a verdade, não a calar nem a abafar, e nada escrever contra ela. É sua obrigação evitar rebaixar-se diante dos poderosos, não enganar os fracos, naturalmente, assim como resistir à tentação do lucro que advém de enganar os fracos. Desagradar aos que tudo possuem equivale a renunciar seja o que for. Renunciar ao salário do seu trabalho equivale por vezes a não poder trabalhar, e recusar ser célebre entre os poderosos é muitas vezes recusar qualquer espécie de celebridade.
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Para isso precisa-se de coragem. As épocas de extrema opressão costumam ser também aquelas em que os grandes e nobres temas estão na ordem do dia. Em tais épocas, quando o espírito de sacrifício é exaltado ruidosamente, precisa o escritor de muita coragem para tratar de temas tão mesquinhos e tão baixos como a alimentação dos trabalhadores e o seu alojamento.

Quando os camponeses são cobertos de honrarias e apontados como exemplo, é corajoso o escritor que fala da maquinaria agrícola e dos pastos baratos que aliviariam o tão exaltado trabalho dos campos. Quando todos os alto-falantes espalham aos quatro ventos que o ignorante vale mais do que o instruído, é preciso coragem para perguntar: vale mais por quê? Quando se fala de raças nobres e de raças inferiores, é corajoso o que pergunta se a fome, a ignorância e a guerra não produzem odiosas deformidades.
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É igualmente necessária coragem para se dizer a verdade a nosso próprio respeito, sobre os vencidos que somos. Muitos perseguidos perdem a faculdade de reconhecer as suas culpas. A perseguição parece-lhes uma monstruosa injustiça. Os perseguidores são maus, dado que perseguem, e eles, os perseguidos, são perseguidos por causa da sua virtude. Mas essa virtude foi esmagada, vencida, reduzida à impotência. Bem fraca virtude ela era! Má, inconsistente e pouco segura virtude, pois não é admissível aceitar a fraqueza da virtude como se aceita a umidade da chuva.
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É necessária coragem para dizer que os bons não foram vencidos por causa da sua virtude, mas antes por causa da sua fraqueza. A verdade deve ser mostrada na sua luta com a mentira e nunca apresentada como algo de sublime, de ambíguo e de geral; este estilo de falar dela convém justamente à mentira. Quando se afirma que alguém disse a verdade é porque houve outros, vários, muitos ou um só, que disseram outra coisa, mentiras ou generalidades, mas aquele disse a verdade, falou em algo de prático, concreto, impossível de negar, disse a única coisa que era preciso dizer.
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Não se carece de muita coragem para deplorar em termos gerais a corrupção do mundo e para falar num tom ameaçador, nos lugares onde a coisa ainda é permitida, da desforra do Espírito. Muitos simulam a bravura como se os canhões estivessem apontados sobre eles; a verdade é que apenas servem de mira a binóculos de teatro.
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Os seus gritos atiram algumas vagas e generalizadas reivindicações, à face dum mundo onde as pessoas inofensivas são estimadas. Reclamam em termos gerais uma justiça para a qual nada contribuem, apelam pela liberdade de receber a sua parte dum espólio que sempre têm partilhado com eles. Para esses, a verdade tem de soar bem. Se nela só há aridez, números e fatos, se para a encontrar forem precisos estudos e muito esforço, então essa verdade não é para eles, não possui a seus olhos nada de exaltante.
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Da verdade, só lhes interessa o comportamento exterior que permite clamar por ela. A sua grande desgraça é não possuírem a mínima noção dela.

As 5 dificuldades em escrever a verdade - parte 2 - Bertolt Brecht


2- A INTELIGÊNCIA DE RECONHECER A VERDADE

Como é difícil dizer a verdade, já que por toda a parte a sufocam, dizê-la ou não parece à maioria uma simples questão de honestidade. Muitas pessoas pensam que quem diz a verdade só precisa de coragem. Esquecem a segunda dificuldade, a que consiste em descobri-la. Não se pode dizer que seja fácil encontrar a verdade.

Em primeiro lugar, já não é fácil descobrir qual verdade merece ser dita. Hoje, por exemplo, as grandes nações civilizadas vão soçobrando uma após outra na pior das barbáries diante dos olhos pasmados do universo.

Acresce ainda o facto de todos sabermos que a guerra interna, dispondo dos meios mais horríveis, pode transformar-se dum momento para o outro numa guerra exterior que só deixará um montão de escombros no sitio onde outrora havia o nosso continente. Esta é uma verdade que não admite dúvidas, mas é claro que existem outras verdades.

Por exemplo: não é falso que as cadeiras sirvam para a gente se sentar e que a chuva caia de cima para baixo. Muitos poetas escrevem verdades deste gênero. Assemelham-se a pintores que esboçassem naturezas mortas a bordo dum navio em risco de naufragar. A primeira dificuldade de que falamos não existe para eles, e contudo têm a consciência tranquila. "Esgalham" o quadro num desprezo soberano pelos poderosos, mas também sem se deixarem impressionar pelos gritos das vítimas.

O absurdo do seu comportamento engendra neles um "profundo" pessimismo que se vende bem; os outros é que têm motivos para se sentirem pessimistas ao verem o modo como esses mestres se vendem. Já nem sequer é fácil reconhecer que as suas verdades dizem respeito ao destino das cadeiras e ao sentido da chuva: essas verdades soam normalmente de outra maneira, como se estivessem relacionadas com coisas essenciais, pois o trabalho do artista consiste justamente em dar um ar de importância aos temas de que trata.

Só olhando os quadros de muito perto é que podemos discernir a simplicidade do que dizem: "Uma cadeira é uma cadeira" e "Ninguém pode impedir a chuva de cair de cima para baixo". As pessoas não encontram ali a verdade que merece a pena ser dita. Alguns se consagram verdadeiramente às tarefas mais urgentes, sem medo aos poderosos ou á pobreza, e, no entanto não conseguem encontrar a verdade. Faltam-lhe conhecimentos. As velhas superstições não os largam, assim como os preconceitos ilustres que o passado frequentemente revestiu de uma forma bela. Acham o mundo complicado em demasia, não conhecem os dados nem distinguem as relações.

A honestidade não basta; são precisos conhecimentos que se podem adquirir e métodos que se podem aprender. Todos os que escrevem sobre as complicações desta época e sobre as transformações que nela ocorrem necessitam de conhecer a dialética materialista, a economia e a história. Estes conhecimentos podem adquirir-se nos livros e através da aprendizagem prática, por mínima que seja a vontade necessária. Muitas verdades podem ser encontradas com a ajuda de meios bastante simples, através de fragmentos de verdades ou dos dados que conduzem à sua descoberta.

Quando se quer procurar, é conveniente ter-se um método, mas também se pode encontrar sem método e até sem procura. Contudo, através dos diversos modos como o acaso se exprime, não se pode esperar a representação da verdade que permita aos homens saber como devem agir. As pessoas que só se empenham em anotar os fatos insignificantes são incapazes de tornar manejáveis as coisas deste mundo. O objetivo da verdade é uno e indivisível. As pessoas que apenas são capazes de dizer generalidades sobre a verdade não estão à altura dessa obrigação.

Se alguém está pronto a dizer a verdade e é capaz de a reconhecer, ainda tem de vencer três dificuldades.

As 5 dificuldades em escrever a verdade - parte 3 - Bertolt Brecht


3 - A ARTE DE TORNAR A VERDADE MANEJÁVEL COMO UMA ARMA

O que torna imperiosa a necessidade de dizer a verdade são as consequências que isso implica no que diz respeito à conduta prática. Como exemplo de verdade inconsequente ou de que se poderão tirar consequências falsas, tomemos o conceito largamente difundido, segundo o qual em certos países reina um estado de coisas nefasto, resultante da barbárie. Para esta concepção, o fascismo é uma vaga de barbárie que alagou certos países com a violência de um fenómeno natural.

Os que assim pensam, entendem o fascismo como um novo movimento, uma terceira força justaposta ao capitalismo e ao socialismo (e que os domina). Para quem partilha esta opinião, não só o movimento socialista, mas também o capitalismo teriam podido, se não fosse o fascismo, continuar a existir, etc. Naturalmente que se trata de uma afirmação fascista, de uma capitulação perante o fascismo. O fascismo é uma fase histórica na qual o capitalismo entrou; por consequência, algo de novo e ao mesmo tempo de velho. Nos países fascistas, a existência do capitalismo assume a forma do fascismo, e não é possível combater o fascismo senão enquanto capitalismo, senão enquanto forma mais nua, mais cínica, mais opressora e mais mentirosa do capitalismo.

Como se poderá dizer a verdade sobre o fascismo que se recusa, se quem diz essa verdade se abstêm de falar contra o capitalismo que engendra o fascismo? Qual será o alcance prático dessa verdade? Aqueles que estão contra o fascismo sem estar contra o capitalismo, que choramingam sobre a barbárie causada pela barbárie, assemelham-se a pessoas que querem receber a sua fatia de assado de vitela, mas não querem que se mate a vitela. Querem comer vitela, mas não querem ver sangue. Para ficarem contentes, basta que o magarefe lave as mãos antes de servir a carne. Não são contra as relações de propriedade que produzem a barbárie, mas são contra a barbárie.

As recriminações contra as medidas bárbaras podem ter uma eficácia episódica, enquanto os auditores acreditarem que semelhantes medidas não são possíveis na sociedade onde vivem. Certos países gozam do raro privilégio de manter relações de propriedade capitalistas por processos aparentemente menos violentos. A democracia ainda lhes presta os serviços que noutras partes do mundo só podem ser prestados mediante o recurso à violência, quer dizer, aí a democracia chega para garantir a propriedade privada dos meios de produção. O monopólio das fábricas, das minas, dos latifúndios gera em toda a parte condições bárbaras; digamos que em alguns sítios a democracia torna essas condições menos visíveis. A barbárie torna-se visível logo que o monopólio já só pode encontrar protecção na violência nua.

Certas nações que conseguem preservar os monopólios bárbaros sem renunciar às garantias formais do direito, nem a comodidades como a arte, a filosofia, a literatura, acolhem carinhosamente os hóspedes cujos discursos procuram desculpar o seu país natal de ter renunciado a semelhantes confortos: tudo isso lhes será útil nas guerras vindouras. É licito dizer-se que reconheceram a verdade, aqueles que reclamam a torto e a direito uma luta sem quartel contra a Alemanha, apresentada como verdadeira pátria do mal da nossa época, sucursal do inferno, caverna do Anticristo? Desses, não será exagerado pensar que não passam de impotentes e nefastos imbecis, já que a conclusão do seu blá-blá-blá aponta para a destruição desse pais inteiro e de todos os seus habitantes (o gás asfixiante, quando mata, não escolhe os culpados).

O homem frívolo, que não conhece a verdade, exprime-se através de generalidades, em termos nobres e imprecisos. Encanta-o perorar sobre "os" alemães ou lançar-se em grandes tiradas sobre "o" Mal, mas a verdade é que nós, aqueles a quem o homem frívolo fala, ficamos embaraçados, sem saber que fazer de semelhantes ditames. Afinal de contas, o nosso homem decidiu deixar de ser alemão? E lá por ele ser bom, o inferno vai desaparecer? São desta espécie as grandes frases sobre a barbárie. Para os seus autores, a barbárie vem da barbárie e desaparece graças à educação moral que vem da educação. Que miséria a destas generalidades, que não visam qualquer aplicação pratica e, no fundo, não se dirigem a ninguém.

Não nos admiremos que se digam de esquerda, "mas" democratas, os que só conseguem elevar-se a tão fracas e improfícuas verdades. A "esquerda democrática" é outra destas generalidades-álibís onde correm a acoitar-se as pessoas inconsequentes, isto é, os incapazes de viver até as últimas consequências as verdades que quer a esquerda, quer a democracia contêm. Reclamar-se alguém da "esquerda democrática" significa, em termos práticos, que pertence ao grupo dos ineptos para revolucionar ou conservar as coisas, ao clã dos generalistas da verdade.

Não é a mim, fugido da Alemanha com a roupa que tinha no corpo, que me vão apresentar o fascismo como uma espécie de força motriz natural impossível de dominar. A escuridade dessas descrições esconde as verdadeiras forças que produzem as catástrofes. Um pouco de luz, e logo se vê que são homens a causa das catástrofes. Pois é, amigos: vivemos num tempo em que o homem é o destino do homem.

O fascismo não é uma calamidade natural, que se possa compreender a partir da "natureza" humana. Mas mesmo confrontados com catástrofes naturais, há um modo de descrevê-las digno do homem, um modo que apela para as suas qualidades combativas. O cronista de grandes catástrofes como o fascismo e a guerra (que não são catástrofes naturais) deve elaborar uma verdade praticável, mostrar as calamidades que os que possuem os meios de produção infligem às massas imensas dos que trabalham e não os possuem.

Se se pretende dizer eficazmente a verdade sobre um mau estado de coisas, é preciso dizê-la de maneira que permita reconhecer as suas causas evitáveis. Uma vez reconhecidas as causas evitáveis, o mau estado de coisas pode ser combatido.

As 5 dificuldades para escrever a verdade - parte 4 - Bertolt Brecht


4 - DISCERNIMENTO SUFICIENTE PARA ESCOLHER OS QUE TORNARÃO A VERDADE EFICAZ

Tirando ao escritor a preocupação pelo destino dos seus textos, as usanças seculares do comércio da coisa escrita no mercado das opiniões deram-lhe a impressão de que a sua missão terminava logo que o intermediário, cliente ou editor, se encarregava de transmitir aos outros a obra acabada. O escritor pensava: falo e ouve-me quem me quiser ouvir. Na verdade, ele falava e quem podia pagar ouvia-o. Nem todos ouviam as suas palavras, e os que as ouviam não estavam dispostos a ouvir tudo o que se lhes dizia.

Tem-se falado muito desta questão, mas mesmo assim ainda não chega o que se tem dito: limitar-me-ei aqui a acentuar que "escrever a alguém" tornou-se pura e simplesmente "escrever". Ora não se pode escrever a verdade e basta: é absolutamente necessário escrevê-la a "alguém" que possa tirar partido dela. O conhecimento da verdade é um processo comum aos que lêem e aos que escrevem. Para dizer boas coisas, é preciso ouvir bem e ouvir boas coisas. A verdade deve ser pesada por quem a diz e por quem a ouve. E para nós que escrevemos, é essencial saber a quem a dizemos e quem no-la diz.

Devemos dizer a verdade sobre um mau estado de coisas àqueles que o consideram o pior estado de coisas, e é desses que devemos aprender a verdade. Devemos não só dirigir-nos às pessoas que têm uma certa opinião, mas também aos que ainda a não têm e deviam tê-la, ditada pela sua própria situação. Os nossos auditores transformam-se continuamente! Até se pode falar com os próprios carrascos quando o prémio dos enforcamentos deixa de ser pago pontualmente ou o perigo de estar com os assassinos se torna muito grande.

Os camponeses da Baviera não costumam querer nada com revoluções, mas quando as guerras duram demais e os seus filhos, no regresso, não arranjam trabalho nas quintas, tem sido possível ganhá-los para a revolução.

Para quem escreve, é importante saber encontrar o tom da verdade. Um acento suave, lamentoso, de quem é incapaz de fazer mal a uma mosca, não serve. Quem, estando na miséria, ouve tais lamúrias, sente-se ainda mais miserável. Em nada o anima a cantilena dos que, não sendo seus inimigos, não são certamente seus companheiros de luta. A verdade é guerreira, não combate só a mentira, mas certos homens bem determinados que a propagam.

As 5 dificuldades em escrever a verdade - parte 5 - Bertolt Brecht


5- HABILIDADE PARA DIFUNDIR A VERDADE


Muitos, orgulhosos de ter a coragem de dizer a verdade, contentes por a terem encontrado, porventura fatigados com o esforço necessário para lhe dar uma forma manejável, aguardam impacientemente que aqueles cujos interesses defendem a tomem em suas mãos e consideram desnecessário o uso de manhas e estratagemas para a difundir. Frequentemente, é assim que perdem todo o fruto do seu trabalho.
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Em todos os tempos, foi necessário recorrer a "truques" para espalhar a verdade, quando os poderosos se empenhavam em abafá-la e ocultá-la. Confúcio falsificou um velho calendário histórico nacional, apenas lhe alterando algumas palavras. Quando o texto dizia: "o senhor de Kun condenou à morte o filósofo Wan por ter dito frito e cozido", Confúcio substituía "condenou à morte" por "assassinou". Quando o texto dizia que o Imperador Fulano tinha sucumbido a um atentado, escrevia "foi executado". Com este processo, Confúcio abriu caminho a uma nova concepção da história.

Na nossa época, aquele que em vez de "povo", diz "população", e em lugar de “terra", fala de "latifúndio", evita já muitas mentiras, limpando as palavras da sua magia de pacotilha. A palavra "povo" exprime uma certa unidade e sugere interesses comuns; a "população" de um território tem interesses diferentes e opostos. Da mesma forma, aquele que fala em "terra" e evoca a visão pastoral e o perfume dos campos favorece as mentiras dos poderosos, porque não fala do preço do trabalho e das sementes, nem no lucro que vai parar aos bolsos dos ricaços das cidades e não aos dos camponeses que se matam a tornar fértil o "paraíso". "Latifúndio" é a expressão justa: torna a trapaça menos fácil.

Nos sítios onde reina a opressão, deve-se escolher, em vez de "disciplina", a palavra "obediência", já que mesmo sem amos e chefes a disciplina é possível, e caracteriza-se portanto por algo de mais nobre que a obediência. Do mesmo modo, "dignidade humana" vale mais do que "honra": com a primeira expressão o indivíduo não desaparece tão facilmente do campo visual; por outro lado, conhece-se de ginjeira o gênero de canalha que costuma apresentar-se para defender a honra de um povo, e com que prodigalidade os gordos desonrados distribuem "honrarias" pelos famélicos que os engordam.

Ao substituir avaliações inexatas de acontecimentos nacionais por notações exatas, o método de Confúcio ainda hoje é aplicável. Lénine, por exemplo, ameaçado pela polícia do czar, quis descrever a exploração e a opressão da ilha Sakalina pela burguesia russa. Substituiu "Rússia" por "Japão" e "Sakalina" por "Coreia". Os métodos da burguesia japonesa faziam lembrar a todos os leitores os métodos da burguesia russa em Sakalina, mas a brochura não foi proibida, porque o Japão era inimigo da Rússia. Muitas coisas que não podem ser ditas na Alemanha a propósito da Alemanha, podem sê-lo a propósito da Áustria. Há muitas maneiras de enganar um Estado vigilante.

Voltaire combateu a fé da Igreja nos milagres, escrevendo um poema libertino sobre a Donzela de Orleans, no qual são descritos os milagres que sem dúvida foram necessários para Joana d'Arc permanecer virgem no exército, na Corte e no meio dos frades.

Pela elegância do seu estilo e a descrição de aventuras galantes inspiradas na vida relaxada das classes dirigentes, levou estas a sacrificar uma religião que lhes fornecia os meios de levar essa vida dissoluta. Mais e melhor deu assim às suas obras a possibilidade de atingir por vias ilegais aqueles a quem eram destinadas. Os poderosos que Voltaire contava entre os seus leitores favoreciam ou toleravam a difusão dos livros proibidos, e desse modo sacrificavam a polícia que protegia os seus prazeres. E o grande Lucrécio sublinha expressamente que, para propagar o ateísmo epicurista confiava muito na beleza dos seus versos.

Não há dúvida de que um alto nível literário pode servir de salvo-conduto à expressão de uma ideia. Contudo, muitas vezes desperta suspeitas. Então, pode ser indicado baixá-lo intencionalmente. É o que acontece, por exemplo, quando sob a forma desprezada do romance policial, se introduz à socapa, em lugares discretos, a descrição dos males da sociedade. O grande Shakespeare baixou o seu nível por considerações bem mais fracas, quando tratou com uma voluntária ausência de vigor o discurso com que a mãe de Coriolano tentou travar o filho, que marchava sobre Roma: Shakespeare pretendia que Coriolano desistisse do seu projeto, não por causa de razões sólidas ou de uma emoção profunda, mas por uma certa fraqueza de caráter que o entregava aos seus velhos hábitos. Encontramos igualmente em Shakespeare um modelo de manhas na difusão da verdade: o discurso de Marco António perante o corpo de César, quando repete com insistência que Brutus, assassino de César, é um homem honrado, descrevendo ao mesmo tempo o seu ato, e a descrição do ato provoca mais impressão que a do autor.

Jonathan Swift propôs numa das suas obras o seguinte meio de garantir o bem-estar da Irlanda: meter em salmoura os filhos dos pobres e vendê-los como carniça no talho. Através de minuciosos cálculos, provava que se podem fazer grandes economias quando não se recua diante de nada. Swift armava voluntariamente em imbecil, defendendo uma maneira de pensar abominável e cuja ignomínia saltava aos olhos de todos. O leitor podia-se mostrar mais inteligente, ou pelo menos mais humano que Swift, sobretudo aquele que ainda não tinha pensado nas consequências decorrentes de certas concepções.

São consideradas baixas as atividades úteis aos que são mantidos no fundo da escala: a preocupação constante pela satisfação de necessidades; o desdém pelas honrarias com que procuram engodar os que defendem o país onde morrem de fome; a falta de confiança no chefe quando o chefe nos leva a todos à catástrofe; a falta de gosto pelo trabalho quando ele não alimenta o trabalhador; o protesto contra a obrigação de ter um comportamento de idiotas; a indiferença para com a família, quando de nada serve a gente interessar-se por ela. Os esfomeados são acusados de gulodice; os que não têm nada a defender, de cobardia; os que duvidam dos seus opressores, de duvidar da sua própria força; os que querem receber a justa paga pelo seu trabalho, de preguiça, etc.

Numa época como a nossa, os governos que conduzem as massas humanas à miséria, têm de evitar que nessa miséria se pense no governo, e por isso estão sempre a falar em fatalidade. Quem procura as causas do mal, vai parar à prisão antes que a sua busca atinja o governo. Mas é sempre possível opormo-nos à conversa fiada sobre a fatalidade: pode-se mostrar, em todas as circunstâncias, que a fatalidade do homem é obra de outros homens. Até na descrição de uma paisagem se pode chegar a um resultado conforme à verdade, quando se incorporam à natureza as coisas criadas pelo homem.

RECAPITULAÇÃO

A grande verdade da nossa época (só seu conhecimento em nada nos faz avançar, mas sem ela não se pode alcançar nenhuma outra verdade importante) é que o nosso continente se afunda na barbárie porque nele se mantêm pela violência determinadas relações de propriedade dos meios de produção. De que serve escrever frases corajosas mostrando que é bárbaro o estado de coisas em que nos afundamos (o que é verdade), se a razão de termos caído nesse estado não se descortina com clareza? É nossa obrigação dizer que, se se tortura, é para manter as relações de propriedade. Claro que ao dizermos isso perdemos muitos amigos; aqueles que são contra a tortura porque julgam ser possível manter sem ela as relações de propriedade (o que é falso).

Devemos dizer a verdade sobre as condições bárbaras que reinam no nosso país a fim de tornar possível a ação que as fará desaparecer, isto é, que transformará as relações de propriedade.Devemos dizê-la aos que mais sofrem com as relações de propriedade e estão mais interessados na sua transformação, ou seja: aos operários e aos que podemos levar a aliarem-se com eles, por não serem proprietários dos meios de produção, embora associados aos lucros e benefícios da exploração de quem produz. E, é claro, devemos proceder com astúcia.

Devemos resolver em conjunto, e ao mesmo tempo, estas cinco dificuldades, já que não podemos procurar a verdade sobre condições bárbaras sem pensar nos que sofrem essas condições e estão dispostos a utilizar esse conhecimento. Além disso, temos de pensar em apresentar-lhes a verdade sob uma forma susceptível de se transformar numa arma nas suas mãos, e simultaneamente com a astúcia suficiente para que a operação não seja descoberta e impedida pelo inimigo.

São estas as virtudes exigidas ao escritor empenhado em dizer a verdade.

(*) Texto de 1934. Tradução de Ernesto Sampaio. Publicado no Diário de Lisboa de 25/Abr/82.

terça-feira, 3 de março de 2009

O Capitalismo roubou da América Latina o sangue-combustível para seu crescimento sanguinário! Latinos americanos, levantem-se! Reclamem justiça! Lutem


A VERDADEIRA DÍVIDA
Guaicaipuro Cuatémoc

Aqui estou eu, descendente dos que povoaram a America há 40 mil anos, para encontrar os que a encontraram só há 500 anos. O irmão europeu da aduana me pediu um papel escrito, um visto, para poder descobrir os que me descobriram. O irmão financista europeu me pede o pagamento, com juros, de uma dívida contraída por um Judas, a quem nunca autorizei que me vendesse. Outro irmão europeu me explica que toda dívida se paga com juros, mesmo que para isso sejam vendidos seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento.

Eu também posso reclamar pagamento e juros. Consta no Arquivo das Indias que, somente entre os anos 1503 e 1660, chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América. Terá sido isso um saque? Não acredito, porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao Sétimo Mandamento! Teria sido espolição? Guarda-me Tanatzin de me convencer que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue do irmão. Teria sido genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomeu de Las Casas ou Arturo Uslar Pietri, que afirma que a arrancada do capitalismo e a atual civilização européia se devem à inundação de metais preciosos retirados das Américas!
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Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata foram o primeiro de outros empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário disso seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução, mas indenização por perdas e danos. Prefiro pensar na hipótese menos ofensiva. Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais do que o início de um plano "MARSHALLTEZUMA", para garantir a reconstrução da Europa arruinada por suas deploráveis guerras contra os muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho diário e outras conquistas da civilização.
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Para celebrar o quinto centenário desse empréstimo, poderemos perguntar: Os irmãos europeus fizeram uso racional, responsável ou pelo menos produtivo desses fundos? Não. No aspecto estratégico, dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em navios invencíveis, em Terceiros Reichs e outras formas de extermínio mútuo, sem um outro destino a não ser terminar ocupados pelas tropas estrangeira da OTAN, como no Panamá, mas sem Canal. No aspecto financeiro foram incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de amortizar o capital e seus juros, quanto independerem das rendas líquidas, as matérias-primas e a energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo.
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Este quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar, e nos obriga a reclamar-lhes, para o seu próprio bem, o pagamento do capital e dos juros que, tão generosamente temos demorado todos estes séculos em cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar, de nossos irmãos europeus, as mesmas vis e sanguinárias taxas de 20% e ate 30% de juros que os irmãos europeus cobram aos povos do Terceiro Mundo. Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos, acrescida de um módico juro fixo de 10%, acumulado apenas durante os últimos 300 anos, com 200 anos de graça.

Sobre esta base, e aplicando a formula européia de juros compostos, informamos aos descobridores que eles nos devem 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambas as cifras elevadas à potencia de 300, isso quer dizer um numero para cuja expressão total seriam precisos mais de 300 cifras, e, que supera amplamente o peso total do planeta Terra. Muito peso em ouro e prata... quanto pesariam calculados em sangue?

Admitir que a Europa, em meio milênio, não conseguiu gerar riquezas suficientes para pagar esses módicos juros, seria como admitir seu absoluto fracasso financeiro e a demencial irracionalidade dos conceitos capitalistas. Tais questões metafísicas, desde já, não inquietam a nós, índios americanos. Porém exigimos a assinatura de uma carta de intenções que discipline aos povos devedores do Velho Continentes e que os obrigue a cumpri-la, sob pena de uma privatização ou conversão da Europa, de forma que lhes permita entregar suas terras, como primeira prestação dessa dívida histórica.

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Não se sabe ao certo se Guaicaipuro Cuatémoc realmente existiu ou se seu nome foi criado para assinar este discurso tão memorável e verdadeiro. Porém, o que importa é perceber as tamanhas injustiças históricas que existem e entender realmente em que lugar está a América Latina em sua importância histórica para a Humanidade, e desta forma lutar para que os povos latino-americanos possam conquistar a felicidade que sempre lhes foi saqueada e honrar o sangue derramdo de seus antepassados, construindo uma sociedade mais justa e combatendo os sanguinários que exploram o mundo há séculos e que continuam a espoliá-lo atualmente.

O sangue da América Latina, sagrando por nossas veias... não podemos esquecer quem somos, nem que nosso destino é alcançar a justiça!

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

"Existe dois grupos de pessoas no mundo - os que NÃO COMEM e os que NÃO DORMEM, por medo da REVOLTA dos que não comem."

Capitalismo - O Capital acima de tudo. (até de nós mesmos)

Os que nos comandam - Governos, Estado, parasitas... (só enquanto permitirmos)

Os que nos enganam - Igrejas, religiões de mentiras... (enquanto fecharmos os olhos)

Os que atiram em nós - Exércitos, Polícias, violência consentida... (enquanto fabricarmos as armas)

Os que comem por nós - Burgueses, empresários, os que enriquecem com nossas vidas... (enquanto formos seus escravos)

E nós, que alimentamos a todos... - Nós somos os famintos, os que hoje estamos passivos, mas que amanhã derrubaremos a todos.

Quando a base da Pirâmide acordar, o topo vai receber o que merece. E o mundo vai ser realmente plano.

Sem o "Mercado" o feijão deixaria de crescer nos campos, ou o sol deixaria de nascer todo dia? Não precisamos de mercado. Precisamos é de humanidade.

Os Burros e o Mercado

"Uma vez, num pequeno e distante vilarejo, apareceu um homem anunciando que compraria burros por R$10,00 cada. Como havia muitos burros na região, os aldeões iniciaram a caçada. O homem comprou centenas de burros a R$10,00, e como os aldeões diminuíram o esforço na caça, o homem anunciou que pagaria R$20,00 por cada burro.

Os aldeões foram novamente à caça, mas logo os burros foram escasseando e os aldeões desistiram da busca. A oferta aumentou então para R$25,00 e a quantidade de burros ficou tão pequena que já não havia mais interesse em caçá-los. O homem então anunciou que compraria cada burro por R$50,00!

Como iria à cidade grande, deixaria seu assistente cuidando da compra dos burros. Na ausência do homem, seu assistente propôs aos aldeões: - 'Sabem os burros que o homem comprou de vocês? Eu posso vendê-los a vocês a R$35,00 cada. Quando o homem voltar da cidade, vocês vendem a ele pelos R$50,00 que ele oferece, e ganham uma boa bolada'.

Os aldeões pegaram suas economias e compraram todos os burros do assistente. Os dias se passaram, e eles nunca mais viram nem o homem, nem o seu assistente, somente burros por todos os lados."

Entendeu como funciona o mercado de ações?

(autor desconhecido)
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E assim, alguns poucos ganham lucros colossais em épocas de crise, uma infinidade de "bobos" perdem somas colossais e uma quantidade absurda de energia, riqueza e esforços é desperdiçada com ganâncias estúpidas, egoísmos imbecis que poderiam ser transformados em ações benéficas para todos os homens e mulheres, gerando bem-estar e qualidade para todos, e não só espertezas e "dinheiro fácil" para tão poucos.
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Todo o nosso sistema é feito de burrice. Todo o Capitalismo é a supremacia da ignorância da espécie, que se dedica à prosperidade de minorias às custas da maioria, degradando toda a Humanidade, sabotando o futuro de nossos povos, destruindo nossas vidas, entupindo nossas almas de lixos comerciais, explodindo nossas mentes com programações e violências.

O Sistema é movido pela estupidez da ganância, do egoísmo e da violência.

São "burros por todos os lados"...

Quando é que se abrirão os olhos e perceberemos que o alimento não depende de dinheiro para crescer nem a fome precisa de dinheiro para surgir em nosso estômago? Se um produz sapato e outro produz milho, ambos precisam de um e de outro, e não se trata de trocas equivalentes, tantos sapatos = tanto milho, e sim entender que todos precisam de sapatos e milho e o que importa é termos o que precisamos e sermos úteis à uma sociedade humana, solidária e fraterna.
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Já as coisas produzidas mas que ninguém precisa, tolices comerciais de luxo, marcas famosas, modas e futilidades, essas coisas precisam ser banidas de nossas vidas, pois substituem nossas essências por simbolismos nascidos da mesma estupidez que move o capitalismo, o egoísmo, a ganância, o desejo de ser superior, quando na verdade todos as mulheres e homens estão no mesmo patamar - abaixo do céu e acima da terra.
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Mercado de Ações? Vamos pensar agora em Fraternidade nas nossas ações.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Toda forma de poder é uma opressão violenta. A polícia não existe pra proteger você

Foto tirada na Marcha Inicial do Fórum Social Mundial 2009, em Belém do Pará, Brasil.

Nenhuma polícia protegia os manifestantes, participantes do Fórum, nenhuma polícia estava nos sinais de trânsito garantindo que os "monstroristas" inconsequentes respeitassem a marcha. Nada. Só a multinacional pôde contar com a "respeitável proteção" de cacetetes e cães ferozes, homens encouraçados, treinados para espantar e atirar.

Será que a megacorporação tinha medo de ser alvo de coquitéis molotov? Por que teria?
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O que importa na nossa sociedade? Gente? Só se forem as "pessoas jurídicas". Essas pessoas sempre estarão amparadas.

E o Governo se aproveita de eventos populares como o FSM para limparem suas imagens sanguinárias, mas no final mostram seus rostos sujos e violentos, escancarados nos cacetetes, escudos, tropas de choque e cães violentos.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Mesmo que no maior sofrimento seja possível alguma felicidade, não vamos justificar o sofrimento.


Conto

Felicidade da Rua


Os carros passavam indiferentes pela avenida mal iluminada. Raios luminosos cruzando o asfalto violentamente. Madrugada afora, nem a luz rubra os detinha, impiedosos em sua velocidade. A brisa gélida da noite fazia coro ao turbilhão dos automóveis, recrudescendo a solidão, o abandono, a tristeza avassaladora.

O cobertor, raquítico como seu dono, mal alcançava os tornozelos estendidos do menino, que se encolhia para proteger-se. Estava sozinho naquele canto isolado da grande praça do centro da cidade. Preferia ficar longe dos outros meninos de rua por ser mais novo que eles e muitas vezes apanhar e ser roubado por eles. Suas únicas companhias eram um gato negro e magro, com uma mancha branca no olho direito, que passeava farejando o lixo, e um livro velho que um dia ele gostaria de conseguir ler, mas cujas imagens já lhe contaram inúmeras histórias.

O movimento da rua aumentava drasticamente quando o sol começava a passear céu acima. O início da manhã marcava o início da jornada de trabalho das pessoas da cidade e as horas sob o calor matinal que esta criança enfrentava rotineiramente, juntando as moedas de seu pão. Enquanto mendigava aos motoristas, um velho vinha todos os dias do viaduto próximo, sentava-se em um banco próximo e fazia ressoar canções cinzas como as ruas, expressando as vidas daqueles moradores indesejáveis.

Alguns poucos passantes se dignavam a jogar umas moedas no chapéu surrado do velho, jogado a sua frente. As palhetas do instrumento exalavam sua música como flores sofridas com a poluição da humanidade, a exclusão de suas vidas. De olhos fechados, concentrava-se em sua música, sem café da manhã ou almoço. Enquanto o sol chicoteava ao longo do dia, o menino pedia tristemente no cruzamento, acompanhado pela cúmplice trilha sonora.

No fim da tarde os dois juntavam os escassos ganhos e iam a uma padaria próxima onde tomavam uma sopa, um copo de leite e, se sobrasse algum trocado, um chocolate para o menino. Um pacote com três ou quatro pães terminava o dinheiro dos dois e, dividido, mitigava a fome pelo resto da noite. Aquele homem era a pessoa mais próxima do menino, que foi abandonado quando bebê em um orfanato.

Lá as crianças antigas o maltratavam e a supervisora era igualmente cruel. Aos oito anos vislumbrou uma porta aberta e ninguém por perto. Hesitou, sem saber o que seria pior, onde estava ou qualquer outro lugar. Afinal, nunca conhecera uma vida que ele pudesse considerar boa. Assistia raramente, quando permitido, à televisão e vira que outras vidas existiam, mas não tinha bem certeza se era real ou não. Ao escutar um barulho vindo do corredor principal, decidiu-se e correu para a rua.

Desde então se seguiram três anos daquela nova vida, não muito melhor que a anterior. Ao invés dos órfãos, tinha outros meninos maiores para molestá-lo. A fome não diminuiu muito. A única mudança significativa fora aquele senhor que melodiava o concreto e era seu amigo. O primeiro amigo que tivera. Contava-lhe histórias, ensinava-o canções sobre a vida de andarilho e sem-teto, e quando possível, dava-lhe lições para alfabetizar o menino. Aprendeu a assinar seu nome com o velho grisalho e simpático que era tão importante para ele. Só não o considerava um pai porque não entendia bem o que era um pai. Amigo era a maior proximidade conhecida.

Seu sonho era poder acompanhar o senhor em suas músicas. A primeira beleza que conhecera na vida, além do verde das árvores e do sorriso de uma menina que passava a caminho da escola todos os dias, fora a música deste homem. Algumas noites a lembrança de certas canções especialmente verdadeiras sobre a vida deles arrancava algumas lágrimas daqueles olhos pequenos e apertados, brilhando ante a faísca dos faróis dos carros.
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Uma vez assistentes sociais tentaram levá-lo de volta ao orfanato, ignorando a desumanidade do lugar. Agarraram-no, arrastaram-no, puseram-no em um carro e o levaram. O velho tentou argumentar, impedir, mas um policial os acompanhava e segurou o homem. Na verdade os assistentes apareceram ali após uma denúncia de um comerciante de que o menino teria roubado seu estabelecimento. Os meninos do outro lado da praça o culparam pelo roubo cometido por eles, simplesmente por pirraça ou maldade. O proprietário confiava num dos moleques que fazia serviços pra ele. Contatou as autoridades para “limpar a praça”.
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Tinha 11 anos na época e alimentado pela amizade do velho, recusara-se com todas as suas forças a permanecer naquela prisão. De todas as formas tentou fugir até que escapou silenciosamente em uma noite qualquer. Encontrou seu amigo e se mudaram para outra praça para não ser encontrado. O menino não dormia com o velho porque preferia a praça ao viaduto. Achava o viaduto ainda mais sujo e mal-cheiroso. Refugiava-se ali somente em dias de chuva.

No aniversário de seus quatorze anos, o senhor comprou um pedaço de bolo na padaria para presentear o menino. Tocou uma música mais alegre, rara em seu repertório, e cantaram juntos durante o dia. O velho disse ainda que fosse passear pelas ruelas do centro, pois compraria um presente para o menino. Para tanto, o velho vendeu um relógio antigo que encontrara alguns anos atrás perdido na rua e a aliança de ouro de sua finada esposa, da época em que o músico ainda era um “cidadão respeitável” daquela cidade, antes de ficar desempregado e ser despejado do prédio onde morava. Sem família nem mais ninguém na cidade, não teve para onde ir e tornou-se morador de rua.

Caminharam pelas ruelas onde se amontoavam lojinhas de bugigangas, bistrôs, antiquários e sebos. Havia ali uma loja de música apertada entre dois prédios, que vendia instrumentos usados e de segunda mão. O menino alegrou-se ao ver aquela vitrine recheada de tambores, bandolins, violinos e flautas. Não segurou a felicidade em vislumbrar aquelas pontes entre o mundo silencioso e a música. O velho notou sua excitação e entrou com ele na loja. Escolheram um pequeno violino, um pouco arranhado, com uma mancha na parte de baixo, mas ainda com um som puro e perfeito.

O primeiro presente daquela vida, da história de uma criança surrada por toda a infância, esquecida pelo mundo e maltratada pelos homens. Pulando de uma alegria que lhe era quase estranha, o menino deu um salto e abraçou o velho como nunca abraçara ninguém. Apertou-o tanto que podia sentir sua respiração, o cheiro de suor tão familiar, a proximidade com a única pessoa importante que tinha.

Saíram de lá rumo ao cais do porto, onde o músico ensinaria o menino a falar através daquele instrumento, cantar, gritar, chorar e amar. O menino sentia todas as vibrações da madeira, fazia daquela peça entalhada uma extensão do seu corpo e em pouco tempo aprendeu como tirar do violino os sentimentos de sua alma, as dores de sua carne.

Daquele dia em diante os dois fizeram uma dupla nas canções intermináveis da noite sem fim de uma cidade inchada e desigual. O som agudo do pequeno instrumento fazia solos suaves e melancólicos, acompanhado pela harmonia do acordeão que preenchia o vento, os bancos e as copas das árvores ao redor. Algumas pessoas até paravam para ouvir os dois, sentavam-se ao redor para ler um livro e desfrutar da boa música. As moedas aumentaram um pouco, permitindo acrescentar à vida diária um café da manhã razoável.

Desde aquele presente a vida deste garoto tornou-se um pouco mais feliz. A felicidade teve alguma expressão nas notas declamadas pelos movimentos melodiosos da mão miúda e juvenil. A tristeza ganhou toques de felicidade que garantiram dias melhores. Aquela praça ganhou em humanidade. A música aqueceu os corações dos que moravam ao redor. A vida seria melhor.