segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Mesmo que no maior sofrimento seja possível alguma felicidade, não vamos justificar o sofrimento.


Conto

Felicidade da Rua


Os carros passavam indiferentes pela avenida mal iluminada. Raios luminosos cruzando o asfalto violentamente. Madrugada afora, nem a luz rubra os detinha, impiedosos em sua velocidade. A brisa gélida da noite fazia coro ao turbilhão dos automóveis, recrudescendo a solidão, o abandono, a tristeza avassaladora.

O cobertor, raquítico como seu dono, mal alcançava os tornozelos estendidos do menino, que se encolhia para proteger-se. Estava sozinho naquele canto isolado da grande praça do centro da cidade. Preferia ficar longe dos outros meninos de rua por ser mais novo que eles e muitas vezes apanhar e ser roubado por eles. Suas únicas companhias eram um gato negro e magro, com uma mancha branca no olho direito, que passeava farejando o lixo, e um livro velho que um dia ele gostaria de conseguir ler, mas cujas imagens já lhe contaram inúmeras histórias.

O movimento da rua aumentava drasticamente quando o sol começava a passear céu acima. O início da manhã marcava o início da jornada de trabalho das pessoas da cidade e as horas sob o calor matinal que esta criança enfrentava rotineiramente, juntando as moedas de seu pão. Enquanto mendigava aos motoristas, um velho vinha todos os dias do viaduto próximo, sentava-se em um banco próximo e fazia ressoar canções cinzas como as ruas, expressando as vidas daqueles moradores indesejáveis.

Alguns poucos passantes se dignavam a jogar umas moedas no chapéu surrado do velho, jogado a sua frente. As palhetas do instrumento exalavam sua música como flores sofridas com a poluição da humanidade, a exclusão de suas vidas. De olhos fechados, concentrava-se em sua música, sem café da manhã ou almoço. Enquanto o sol chicoteava ao longo do dia, o menino pedia tristemente no cruzamento, acompanhado pela cúmplice trilha sonora.

No fim da tarde os dois juntavam os escassos ganhos e iam a uma padaria próxima onde tomavam uma sopa, um copo de leite e, se sobrasse algum trocado, um chocolate para o menino. Um pacote com três ou quatro pães terminava o dinheiro dos dois e, dividido, mitigava a fome pelo resto da noite. Aquele homem era a pessoa mais próxima do menino, que foi abandonado quando bebê em um orfanato.

Lá as crianças antigas o maltratavam e a supervisora era igualmente cruel. Aos oito anos vislumbrou uma porta aberta e ninguém por perto. Hesitou, sem saber o que seria pior, onde estava ou qualquer outro lugar. Afinal, nunca conhecera uma vida que ele pudesse considerar boa. Assistia raramente, quando permitido, à televisão e vira que outras vidas existiam, mas não tinha bem certeza se era real ou não. Ao escutar um barulho vindo do corredor principal, decidiu-se e correu para a rua.

Desde então se seguiram três anos daquela nova vida, não muito melhor que a anterior. Ao invés dos órfãos, tinha outros meninos maiores para molestá-lo. A fome não diminuiu muito. A única mudança significativa fora aquele senhor que melodiava o concreto e era seu amigo. O primeiro amigo que tivera. Contava-lhe histórias, ensinava-o canções sobre a vida de andarilho e sem-teto, e quando possível, dava-lhe lições para alfabetizar o menino. Aprendeu a assinar seu nome com o velho grisalho e simpático que era tão importante para ele. Só não o considerava um pai porque não entendia bem o que era um pai. Amigo era a maior proximidade conhecida.

Seu sonho era poder acompanhar o senhor em suas músicas. A primeira beleza que conhecera na vida, além do verde das árvores e do sorriso de uma menina que passava a caminho da escola todos os dias, fora a música deste homem. Algumas noites a lembrança de certas canções especialmente verdadeiras sobre a vida deles arrancava algumas lágrimas daqueles olhos pequenos e apertados, brilhando ante a faísca dos faróis dos carros.
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Uma vez assistentes sociais tentaram levá-lo de volta ao orfanato, ignorando a desumanidade do lugar. Agarraram-no, arrastaram-no, puseram-no em um carro e o levaram. O velho tentou argumentar, impedir, mas um policial os acompanhava e segurou o homem. Na verdade os assistentes apareceram ali após uma denúncia de um comerciante de que o menino teria roubado seu estabelecimento. Os meninos do outro lado da praça o culparam pelo roubo cometido por eles, simplesmente por pirraça ou maldade. O proprietário confiava num dos moleques que fazia serviços pra ele. Contatou as autoridades para “limpar a praça”.
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Tinha 11 anos na época e alimentado pela amizade do velho, recusara-se com todas as suas forças a permanecer naquela prisão. De todas as formas tentou fugir até que escapou silenciosamente em uma noite qualquer. Encontrou seu amigo e se mudaram para outra praça para não ser encontrado. O menino não dormia com o velho porque preferia a praça ao viaduto. Achava o viaduto ainda mais sujo e mal-cheiroso. Refugiava-se ali somente em dias de chuva.

No aniversário de seus quatorze anos, o senhor comprou um pedaço de bolo na padaria para presentear o menino. Tocou uma música mais alegre, rara em seu repertório, e cantaram juntos durante o dia. O velho disse ainda que fosse passear pelas ruelas do centro, pois compraria um presente para o menino. Para tanto, o velho vendeu um relógio antigo que encontrara alguns anos atrás perdido na rua e a aliança de ouro de sua finada esposa, da época em que o músico ainda era um “cidadão respeitável” daquela cidade, antes de ficar desempregado e ser despejado do prédio onde morava. Sem família nem mais ninguém na cidade, não teve para onde ir e tornou-se morador de rua.

Caminharam pelas ruelas onde se amontoavam lojinhas de bugigangas, bistrôs, antiquários e sebos. Havia ali uma loja de música apertada entre dois prédios, que vendia instrumentos usados e de segunda mão. O menino alegrou-se ao ver aquela vitrine recheada de tambores, bandolins, violinos e flautas. Não segurou a felicidade em vislumbrar aquelas pontes entre o mundo silencioso e a música. O velho notou sua excitação e entrou com ele na loja. Escolheram um pequeno violino, um pouco arranhado, com uma mancha na parte de baixo, mas ainda com um som puro e perfeito.

O primeiro presente daquela vida, da história de uma criança surrada por toda a infância, esquecida pelo mundo e maltratada pelos homens. Pulando de uma alegria que lhe era quase estranha, o menino deu um salto e abraçou o velho como nunca abraçara ninguém. Apertou-o tanto que podia sentir sua respiração, o cheiro de suor tão familiar, a proximidade com a única pessoa importante que tinha.

Saíram de lá rumo ao cais do porto, onde o músico ensinaria o menino a falar através daquele instrumento, cantar, gritar, chorar e amar. O menino sentia todas as vibrações da madeira, fazia daquela peça entalhada uma extensão do seu corpo e em pouco tempo aprendeu como tirar do violino os sentimentos de sua alma, as dores de sua carne.

Daquele dia em diante os dois fizeram uma dupla nas canções intermináveis da noite sem fim de uma cidade inchada e desigual. O som agudo do pequeno instrumento fazia solos suaves e melancólicos, acompanhado pela harmonia do acordeão que preenchia o vento, os bancos e as copas das árvores ao redor. Algumas pessoas até paravam para ouvir os dois, sentavam-se ao redor para ler um livro e desfrutar da boa música. As moedas aumentaram um pouco, permitindo acrescentar à vida diária um café da manhã razoável.

Desde aquele presente a vida deste garoto tornou-se um pouco mais feliz. A felicidade teve alguma expressão nas notas declamadas pelos movimentos melodiosos da mão miúda e juvenil. A tristeza ganhou toques de felicidade que garantiram dias melhores. Aquela praça ganhou em humanidade. A música aqueceu os corações dos que moravam ao redor. A vida seria melhor.

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