terça-feira, 10 de junho de 2008

Ninguém representa ninguém! Represente a si mesmo - não guilhotine sua vontade própria... O seu voto é sua cabeça, fique com ele. Eleições? Submissão!


Representação não é Democracia!

Caso perguntássemos a algum dos grandes pensadores do iluminismo francês, Rousseau, Voltaire, Montesquieu ou Diderot, o que era democracia, eles certamente que diriam que, primeiro, era uma coisa do passado, e segundo que não voltaria jamais, que nunca este sistema originário na Grécia antiga e recorrente no princípio da República Romana voltaria às sociedades modernas. Naqueles tempos, fins do século XVIII, não existia no mundo nenhum exemplo vivo de democracia. A França vivia sob uma monarquia decadente, ostensiva e autoritária, a Inglaterra, que após a revolução gloriosa, teve instaurado seu parlamento, tampouco poderia ser chamada de democrática, posto que no parlamento os lordes representavam à si mesmos, seus próprios interesses, e não às massas que continuavam miseráveis nos becos sujos das cidades e nos campos feudais britânicos. O resto do mundo vivia sob monarquias, desde os impérios do Oriente, até as estepes russas. Apenas as nações indígenas da América do Sul e as tribos dos pele-vermelhas norte-americanos tinham sociedades diferentes, mas que não vem ao caso, por serem demasiado isoladas.

Em 1776, ocorreu a Independência Americana, que significou uma experiência totalmente nova. Os colonos recém independentes se viram na tarefa de administrar seus territórios por conta própria. Não queriam, evidentemente, a Monarquia Parlamentarista inglesa, da qual acabavam de se ver livres, nem a considerada obsoleta e inoperante democracia grega, onde todos os cidadãos votavam diretamente na Assembléia, envolvidos em todos os acontecimentos políticos da sociedade, o que se mostrava ineficaz para os americanos.

Lembremos de que a democracia grega não era eletiva. Ninguém era eleito para tomar as decisões políticas. As questões mais importante para a Cidade-Estado eram votadas pelos cidadãos reunidos na Ágora ou comissões eram formadas por indicação e revezamento, para tratar dos temas menores. Uma grande invenção daqueles tempos foi o princípio da isonomia, que determina que todos são iguais, politicamente falando. Fosse aristocrata, fosse artesão, filósofo ou marinheiro, se estivesse na condição de cidadão ateniense, o voto de cada um tinha o mesmo peso. As eleições, portanto, eram consideradas impróprias por serem avessas a essa isonomia. Uma eleição é basicamente a escolha dos “melhores” para determinado cargo, e os “melhores” eram sempre necessariamente aristocratas, que eram aqueles que eram donos das terras e tinham recursos para se darem ao luxo de terem muito tempo livre, esse dedicado à educação, contrariando a idéia da igualdade entre eles e da decisão nas mãos de todos. Assim, o que era de grande importância era decidido pelo total de cidadãos presentes, fossem quantos fossem.

De volta para as 13 Colônias, os dominantes que estavam à frente da independência não queriam jamais uma democracia, pois se todos fossem participar igualmente do processo decisório, achavam que cada um buscaria unicamente seus interesses individuais, sendo assim, a política se tornaria uma imensa somatória de egoísmos. Era preciso encontrar uma terceira possibilidade, que evitasse essa busca limitada aos interesses pessoais, o que tornava o governo um caos. James Madison, um dos influentes intelectuais da independência, propôs essa outra via, o Princípio da Representação. Seria a escolha da minoria pela maioria. Esta minoria seria encarregada de cuidar de todos os assuntos políticos, uma classe representando a maioria que os elegeu. O que garantiria que essa minoria não fissesse o mesmo que os outros, trabalhando em prol apenas deles mesmos? O fato de que eles foram elevados àquele nível por um contigente de pessoas que, se se sentissem que os eleitos não defendiam os interesses gerais, não votaria neles novamente.

Naqueles anos agitados, início do século XIX, a sociedade ocidental era dita comercial, marcada pela divisão do trabalho, onde cada indivíduo tinha uma especialidade pela qual se diferenciava dos demais. Um era ferreiro, outro comerciante de ferraduras, outro fazendeiro, outro estaleiro, e assim por diante. O tempo que precisavam dedicar aos seus assuntos particulares era majoritário. Sobrava pouco tempo para outras coisas. Todos os problemas e preocupações de suas ocupações individuais não deixava muito espaço para as preocupações coletivas. Daí surgia um problema - se as pessoas, em seus nichos de atuação, não tinham tempo para cuidar da questão pública, quem cuidaria? Mais um motivo então para a criação da classe política, essa minoria “dedicada” integralmente aos assuntos públicos, dos quais não conseguiam dar contas as demais pessoas, nem nunca tiveram o costume de o fazer. Todas as sociedades estavam acostumados com regimes ditatoriais que impunham a vontade de uma elite. A população nunca esteve incumbida de gerenciar a sociedade, com exceção da restrita democracia grega.

Sendo assim, quando a solução da representação foi proposta, todos consideraram conveniente, ou simplesmente se abstiveram, pela força do hábito, de opinar a respeito. Com a promulgação da primeira constituição escrita da história, nasceu também a primeira nação federativa e presidencialista. Foi o início da confusão entre Democracia e Representação. Aproveitaram-se das idéias de Montesquieu sobre os três poderes em que deveriam ser divididos o Estado - Executivo, Legislativo e Judiciário - organizando, desta forma, aquela realidade paralela, a da política governamental e eleitoral. Como sempre, as decisões políticas estavam em outra esfera distante da vida popular.

Essa condição de classe detentora do poder decisório sobre o interesse comum criou o “princípio da distinção”, uma diferenciação entre a classe política e as demais. Já que as pessoas delegaram à terceiros as decisões sobre os interesses comuns, elas se colocavam distantes desses assuntos. O poder de ação, regulação e direção sobre a sociedade continuou nas mãos de alguns poucos. Aconteceu que o Rei se transformou em uma comissão de reis (vulgo, parlamentares), vários indivíduos dotados de poder superior ao de qualquer indivíduo comum, pela legitimação institucional (fictícia) dada pelo voto, pois criou-se o mito de que A Nação, O Povo (transformada(o) em uma entidade supra-indivíduo) escolheu e cabe a todos obedecer.

Em seu livro Os Princípios do Governo Representativo, Bernard Manin constata que aos representantes são distintos dos representados, e são os primeiros que possuem a prerrogativa de definir o que é ‘interesse público’. Destituída, ou então, delegada a preocupação com os próprios interesses, que dentro do todo, são ditos ‘públicos’, cada indivíduo continuou, como sempre esteve nas épocas monárquicas, longe e desinteressado da política. Esta distância permitiu àqueles elevados ao cargo político adquirirem para si privilégios, semelhantes aos da nobreza da Idade Média. Controle sobre a riqueza da nação, existente na forma de impostos, tornou predominante na “classe política” a cupidez indiscriminada, a busca pela própria riqueza, pela sempre crescente influência, pelo fortalecimento da tal distinção.

A desigualdade entre os homens é legitimada por ser parte integrante imprescindível na forma de governar. O caráter aristocrático do sistema representativo, que colocou no pedestal eleitoral todos os hereditários poderosos, construiu-se na mentalidade da manutenção desse poder. As polícias e os exércitos se constituem, conseqüentemente, nas forças materiais capazes de assegurar a perpetuação da ordem vigente, para que os indivíduos não possam mais requerer o direito delegado de decidirem sobre eles mesmos.

Há também a invenção dos partidos. Fez-se preciso a organização dos indivíduos interessados em ingressar na vida pública, nas eleições, no poder governamental. Nem mesmo entre o pequeno grupo dedicado ao poder existiu em alguma época da humanidade unidade, portando, as forças afins entre si se juntaram e criaram as corporações políticas, chamadas partidos. À exemplo das antigas guildas medievais, onde os artesãos se associavam para auxilio mútuo, a fim de controlar os demais e garantir-lhes certos monopólios e seguranças, sendo vetada a entrada de qualquer novo artesão sem a permissão da guilda específica, os partidos construíram-se como esfera exclusivista (diga-se também excludente), sendo única porta legal para o sistema eleitoral. Cria-se assim um monopólio até mesmo das eleições, pois caso algum grupo que se oponha excessivamente ao sistema vigente, ele é rapidamente deslegalizado e impedido de tomar parte no governo, como aconteceu por tantos anos com o Partido Comunista Brasileiro durante o século XX.

Hoje, se os rótulos do PCB e suas ramificações permaneceram, sua essência, para manter-se ‘legal’ no sistema, teve que igualar-se aos demais, para não gerar nenhum atrito estrutural. No cenário conjuntural, as rivalidades partidárias continuam imensas, assim como foram constantes e ininterruptas as guerras entre senhores feudais na antiguidade, sem, no entanto, contestação da instituição da monarquia, ou, modernamente, do sistema representativo.

Se antes a intenção do pluripartidarismo era oferecer diversas opções para os variados tipos de pensamentos individuais que quisessem ingressar na política, hoje o objetivo comum a todos os partidos de tomar controle do poder e dos privilégios serviu para igualar todas essas entidades. Nenhuma cogita perder seu posto sob a sombra das vantagens do poder, nenhuma ousa mexer nas estruturas de seu próprio palácio, a não ser para ampliá-lo. Jamais para abrir para outras pessoas as portas desse ‘paraíso’.

“É preciso que as coisas mudem um pouco para que nada mude”. Caiu a monarquia, veio a República Representativa. Parece que houveram mudanças, mas não. O egoísmo sob nova forma. A distinção entre o povo e os mandatários tornou-se tão grande que os últimos viram-se praticamente livres dos outros, independentes para fazer o que bem entenderem, dispor dos recursos nacionais como der na telha, declarar guerra ou firmar acordos com quem lhes for mais interessante e vantajoso, enfim, administrar o de todos como uma grande propriedade fortemente disputada, uma coroa cobiçadíssima.

Atualmente o Executivo, Senado e a Câmara são praticamente autarquias, que não devem grandes satisfações à ninguém, dando-se ao direito de tornar sigiloso o que não for interessante tornar público (como se o próprio e mentiroso sistema não dissesse que tudo já não é público) - como é o caso dos arquivos da ditadura e dos registros das corrupções de todos os mandatos -, decretando como segredo nacional ações capciosas demais para serem divulgadas, enfim, escondendo tudo o que não deve ser vistos pelos inocentes eleitores, representados. "É preciso manter a ordem!"

O Judiciário nada mais é do que um braço a mais dos dois outros poderes, o Executivo e Legislativo, não tendo grandes poderes de combater as ingerências dos mesmos. Os três poderes, no final das contas, principalmente aqui no Brasil, tornaram-se uma incompreensível (para os leigos) mesa de negociações partidárias, onde as influências e poderes são cedidos e tomados todo o tempo e onde nada se faz sem os pagamentos e distribuição de posições e cargos a um e a outro. Alguém se lembra de que no surgimento do Feudalismo, os Reis distribuíram terras entre os nobres para comprar-lhes apoio? Pois bem, insaciados, os senhores ainda assim conspiram e fazem cair coroas, ou no mínimo as impossibilitam de fazer qualquer movimento, sem os devidos pagamentos.

A política moderna não se faz sem os acordos e concessões à base governista e à oposição. Nada acontece sem primeiro terem que distribuir tantos ministérios para partido A, tantas secretarias para partido B e tantos acordos e contratos com partido C, empreiteira D, corporação E, Oligarquia F, Coronelado G, imprensa H, fazendeiros I, industriais J e o alfabeto inteiro de responsabilidades, subornos e pressões políticas dos interesses privados. O interesses público, que supostamente deu início à espoliação da população, é mera fachada, bandeira branca da paz, que garante a continuação de tudo.

Representação não é democracia. Não se pode acreditar nessa falácia. Não existe nenhuma democracia na face da Terra. Nenhuma nação, onde a vasta maioria utiliza demagogicamente o termo de “democrática”, pode dizer isso. O que existe são incontáveis ditaduras minoritárias, governadas por grupos elitistas numericamente insignificantes, mas poderosíssimos devido às ‘instituições’ da propriedade privada e do dinheiro, que dá à esses homens o “direito” de estarem acima dos demais, sejam milhares ou milhões.

Há ditadura? Sim, há. Ditaduras mascaradas sob o véu de constituições meticulosamente desenhadas para soarem como abrangentes a todos os supostos cidadãos, mas que na prática são mantos protetores das injustiças e desigualdades, baluartes da propriedade privada e da autoridade impositiva e opressiva, defensora do sistema marcantilizador dos homens, onde de almas à corpos podem ser quantificados em cifras, sendo vidas investimentos, prejuízos ou descartáveis.

Considerando a sustentabilidade do sistema representativo antidemocrático, como poderia ser ele considerado viável se as populações são tão numerosas que um punhado de indivíduos, ainda que se considerasse que estes se dedicassem unicamente ao bem público (o que não é nem nunca será verdade), não são suficientes para dar cabo de todas as demandas? Resultado é que as necessidades sociais, econômicas e produtivas dos países se arrastam, se atrasam, se engavetam e se ignoram, pois um punhado de deputados e senadores não podem estar encarregados das necessidades de milhões de pessoas. Como poucas secretarias e ministérios podem dar conta de todas as ruas, todas as casas, praças, escolas, hospitais e locais de lazer de uma cidade, estado, país? Não podem, e esses aspectos da vida social acabam ignorados e sucateados por irresponsável concentração de poder.

Deterioram-se continuamente as cidades e os campos, mortificados pelas mazelas sociais da pobreza, injustiça, violências contra o meio ambiente e as camadas populares, entupimento do crescente tráfego rodoviário, sufocação pela expansão desorganizada da área urbana, concentração fundiária sanguinária, pautada pelo lucro e não pela fome, expulsando o homem da terra, exclusão dos desfavorecidos, exploração dos desesperados, assassinatos irrefreáveis, frutos da desigualdade e opressão. Os problemas e as mortes se generalizam e banalizam, até que a autodestruição ponha fim a essa insânia, ou que as pessoas percebam que não podem se deixar representar e construam sociedades desinchadas e sustentáveis, baseadas na solidariedade e participação voluntária de todos numa sociedade humanizada, motivada pelas necessidades gerais dos homens, pela felicidade de todos, ao invés de santificar os lucros que não têm nos homens qualquer importância.

Representação não é democracia! Desmistifiquemos e combatamos essa mentira, não permitindo que a perversidade do sistema use a ilusão da democracia para sua legitimidade. Sem esse escudo ideológico, a estrutura se corroerá, pois se perceberá que ninguém está incluso a menos que abdique da vida e do futuro, numa existência mortífera, entorpecente e falsa. Representação não é democracia. A decisão sobre sua vida não está em suas mãos. Votar é apenas negar o seu próprio caminho. Eleição é o mecanismo ludibriador popular. Ninguém lhe representa a não ser você. Se represente.
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Texto baseado em palestra de Renato Lessa, Cientista Político, exibido na TV Cultura no dia 19 de Maio de 2008, no programa Invenção do Contemporâneo, além de informações complementares, pesquisa e reflexão.

Um comentário:

Anônimo disse...
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