quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Morte e Vida Severina "Somos muitos Severinos, iguais em tudo na vida: iguais porque o sangue que usamos tem pouca tinta..."


Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
- É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.

- Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

- É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.

Viverás, e para sempre
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
- Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
- Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
- Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
Serás semente, adubo, colheita.
- Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
- Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.

- Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
- Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo)
- Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).
- Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).
- Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos)
- Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).

- Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.
- Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.
- Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.
- Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.
- Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.
- Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.

- Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.
- De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito à viração.
- Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.
- E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.
- Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.
- Se abre o chão e te envolve,
como mulher com que se dorme.

(Trecho de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.)

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Só a cova aguarda o nordestino, só a morte lhe estende a mão. Fora o suor que ele derrama no sertão, nada mais lhe cabe, nada lhe é próprio, nem onde pisa, seu rachado chão. É uma terra tão grande nas mãos de tão poucos. E pelo direito à propriedade privada, assassinam-se milhares de pessoas pela privação...

Que a terra um dia seja de todos, pois ninguém pode se dizer dono da natureza, do natural.
A propriedade privada é um crime à humanidade e maldito foi o homem que criou a cerca.