quarta-feira, 17 de setembro de 2008

"Antes as paredes tinham ouvidos, hoje os ouvidos têm paredes"


A Suprema Censura

Liberdade de expressão. A liberdade de professar o que se pensa, manifestar opiniões, exprimir idéias. Mas para professar o que se pensa é imprescindível pensar, para manifestar opiniões, antes é preciso formá-las, para exprimir idéias, precisamos criá-las, refleti-las, conhecê-las, entendê-las, expandi-las, desenvolvê-las. De que serve uma “Liberdade de Expressão” para quem não tem nada a expressar? Para que expor um pensamento que não foi pensado? Manifestar é inútil sem opiniões.
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Foi-se o tempo em que a censura era concreta, visível, podia-se sentir. Mesmo que os olhos não enxergassem, mesmo que ninguém dissesse, todos sabiam, ninguém se atrevia a dizer o que não devia, pois seria escutado (e encontrado). Só era permitido dizer o que não confrontava o Sistema, à ordem estabelecida, ao poder dominante. Mas, por quê? Porque a opressão e o controle sobre todos eram explícitos e qualquer um podia ser um delator. Sempre havia alguém ouvindo, ninguém estava seguro. O perigo de ser preso e perder a vida eram constantes. “As paredes tinham ouvidos”
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Uma situação de tamanha opressão certamente não poderia ser sustentada por muito tempo, haveria rebeliões contra tal sufocamento profundo, cairiam inevitavelmente, pela insurreição dos oprimidos, os opressores. Certo? Errado, porque havia muito mais por trás da simples opressão, como sempre houve. Por trás da opressão havia (como há) todo um mecanismo, estrutura, poderio ideológico e cultural fabricado pela classe dominante para legitimar a opressão.
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Primeiro vamos situar no tempo histórico os acontecimentos. Estamos falando das inúmeras Ditaduras explícitas que existiram durante o fim do século XIX, todo o século XX e agora adentrando o nosso século XXI. Mas, antes uma pergunta deve ser feita. Qual o conceito de Ditadura? O conceito “dominante” define Ditadura como o governo/regime político que não obedece à lei e não foi conferido pela legitimidade popular.
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Porém, esse conceito é muito falho, sabe por quê? Porque, quem é que faz a lei? Os governantes. Se são eles, como podem fazer uma lei que não regularize a própria atitude? Como podem não a estar cumprindo? O Governo nunca estará contra a lei, pelo menos não em sua amplitude. Talvez uma coisinha ou outra, facilmente corrigíveis. A regra do sistema dominante nunca será transgredida por governo algum, logo, nunca estará contra a lei.
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Também podemos questionar essa “entidade maior” que é o Povo, que dá legitimidade a todos os governos e, segundo eles, tem plenos poderes de os tirarem de lá quando estes são lhe são fiéis representantes. Como pode alguém afirmar que a escolha do Povo representa realmente seu desejo se este é mantido ignorante e subserviente, controlado pelo governo e pela classe dominante? Como se pode dizer que foi uma escolha popular possuir representantes se historicamente o povo é oprimido e forçado a aceitar as vontades e imposições vindas de cima? Analogicamente à diplomacia do canhão, quando os países assinavam acordos desvantajosos sob a mira das armadas estrangeiras, existem as eleições do canhão onde severas ameaças aguardam os que se recusam a se submeterem.
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Para continuar o raciocínio, precisamos ainda de outra pergunta – Quais são os “conceitos” base do Sistema dominante? A Propriedade Privada (o dinheiro é uma representação da propriedade, portanto, uma forma de propriedade privada), o Estado Representativo (falsamente dito Democracia), o Individualismo (Egoísta) e a Liberdade (Individualista), tudo isso sustentado por uma Ordem Estabelecida, uma Estabilidade que permita a devida prática da exploração, o princípio do Sistema dominante.
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Os governos representativos, que surgiram a partir da Independência dos Estados Unidos (origem do Princípio Representativo), de acordo com o conceito que eles próprios criaram, não são nenhum deles Ditaduras, apesar de serem impositivos, onde o povo não tem poder nenhum a não ser delegar o seu poder para outrem dominá-lo. Já os governos militares que vigoraram em toda a América Latina e muitos outros países do mundo durante a segunda metade do século XX eram considerados Ditaduras (mesmo que as potências do mundo não fizessem caso disso) pelos povos que os sofreram. Por quê? Porque infringiram (explicitamente) um dos conceitos básicos – a liberdade (ainda que a idéia de liberdade seja bem limitada).
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Sim, transgrediram uma lei, mas das quatro bases ideológicas (Propriedade, Representação, Individualismo e Liberdade), tais Ditadores suprimiram apenas a última e mais superficial e ainda de forma incompleta. Liberdade no conceito dominante da palavra é sermos livres para comprarmos o que quisermos, livres para escolher entre qualquer marca, livres para irmos aonde quisermos e for seguro (e segurança já é um outro conceito dominante, pretexto para se esconder o que for preciso, como os frutos da opressão e da desigualdade – uma favela, por exemplo -, e proibir o que for conveniente. Em prol da ‘segurança’, isolam-se as áreas periféricas, excluindo-as, cercando-as pelas forças policiais e pela maquiagem urbanística em geral), liberdade para assistir o que nos satisfizer e, sem tanta importância ou uso cotidiano, liberdade para exprimirmos nosso pensamento (que pensamento?).
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Logo se vê que nas Ditaduras citadas, dentro do conceito de Liberdade, só a de expressão foi cerceada. Tal limitação incomodou muito pouco a grande parte da população rica (que era uma mínima parcela da população). Incomodou menos ainda a grande parte da população pobre, que não tinha (nem tem) a menor idéia do que é expressar-se ou ainda ter pensamentos próprios. Somente uma minúscula parcela das pessoas, que não se deixava (nem se deixa) manipular (ao menos não totalmente) pelo controle ideológico dominante é que se incomodou com a Ditadura e protestou, lutou e resistiu.
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Houve algum problema? Quase nenhum. Esses poucos facilmente foram criminalizados pela mídia corporativa (aliada íntima de todos os Governos), transformados em “terroristas”, perseguidos, presos e torturados. Após o assassinato, acho que não preciso dizer que o camarada estava silenciado, não é? E assim foi. A opressão logo silenciou os protestos e tudo voltou a tão agraciada “ordem”. Algumas mentirinhas mais, algumas dívidas contraídas, algumas vidas sacrificadas e pode-se criar conjunturas de “progresso econômico” e etc. A História é testemunha.
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Creio que agora nos situamos, todos sabem de que período se fala. O suporte da força ideológica e cultural citado é justamente os quatro pilares base do sistema dominante e, de acordo com este cenário, a opressão não era tão grande assim. A boa maioria dos ricos vivia com todo o conforto que sempre teve, continuaram a expressar suas idéias (de exploração) conservadoras, muitos até tiveram na Ditadura um momento excelente para aumentar suas fortunas. Os pobres e miseráveis viveram como sempre viveram. Não falavam antes, não passaram a falar depois. Nada mudou.
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Passaram algumas décadas e todas as Ditaduras “acabaram”. Pelo menos as Ditaduras no conceito da classe dominante. Acontece que tais regimes não acabaram porque foram tirados de lá. Eles é que, prestativamente, prepararam tudo para a volta da “Democracia Representativa” (que de democracia não tem nada). Os governos ditatoriais (uma redundância, eu sei) prepararam todo o caminho para a volta dos “democráticos”. O que foi que mudou? Nada. Apenas que os governantes militares voltaram para os bastidores enquanto seus pares civis assumiam.
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Mas, se nada mudou, porque, afinal, as Ditaduras aconteceram? Porque na época dos golpes, um percentual maior de pessoas estava começando a desmanchar as correntes ideológicas, libertando-se das prisões do pensamento e percebendo a realidade do Sistema dominante – opressão, injustiça, desigualdade, violência, miséria, destruição, ditadura. Idéias de justiça (apesar de muitas vezes distorcidas) e consciência social começavam a ter um maior alcance nas mentes populares. As pessoas abriam os olhos para os mecanismos de controle. No entanto, resultado do próprio mecanismo, a mudança da consciência social, ao invés de ser praticada de forma direta, através da participação popular para construir uma nova realidade, foi feita de forma indireta, nas eleições de governos mais engajados com as causas sociais.
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Esses governos mais sociais, apesar de terem amplo apoio popular, transgrediram a maior das leis do Sistema, confrontaram o conceito maior da ideologia dominante, a Propriedade Privada.
Tinham planos de reforma agrária (desapropriação de terras dos grandes latifúndios), estatização de indústrias fundamentais (desapropriação de meios de produção), fortes investimentos em educação (desapropriação dos eleitores, considerados propriedades dos políticos-coronéis) busca da soberania nacional (desapropriação das Nações como um todo, antes praticamente propriedades das grandes potências capitalistas, as quais ditavam [e ainda ditam] todas as regras).
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Na Argentina um golpe militar derrubou o governo populista de Perón (1955). No Brasil, Jango, que também se preocupava com as questões sociais, foi derrubado pelo golpe de 64. Algum tempo depois, no Chile, outro governo dedicado à causa popular subia, na figura de Salvador Allende e três anos depois foi derrubado pelo golpe militar, liderado por Pinochet em 1973.
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A estrutura econômica após os golpes permaneceu intacta, ou melhor, fortalecida. A exploração da população pelas grandes corporações nacionais e internacionais, detentoras do poder econômico, ampliou-se, a força do capital era total, as condições para potentes lucros eram bastante favoráveis, pois os governos militares estavam a serviço do capitalismo. Mas a maior mudança foi realmente varrer as idéias de liberdade das mentes das pessoas.
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No período “pós”-ditadura, ressurgiram os partidos de esquerda, porém com um discurso e ações totalmente harmonizadas com a ordem vigente. Nenhum questionava o sistema de Estado e queriam, inclusive, ingressar nele pela porta de entrada, as eleições, achando que podiam usá-lo para alcançar seus objetivos que, infelizmente, mostraram-se (e ainda se mostram) todos privados e gananciosos, buscando apenas o benefício das cúpulas partidárias.
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Por que esses partidos, que faziam tantas promessas sociais, foram permitidos, se, na teoria eles pareciam transgredir a lei da propriedade? Por duas razões, primeiro porque os dominantes sabiam que eles não eram ameaça real para o sistema. Não tinham visão estrutural, meramente conjuntural e simplista. E segundo porque, como aconteceu, a derrocada ideológica desses partidos desacreditou totalmente a oposição que pareceu (e era) à população farinha do mesmo saco. Dissolveram-se as forças contrárias e preservou-se o statu quo.
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Hoje não são precisos mais organismos concretos de censura, facilmente perceptíveis, apesar de que ainda existam por garantia (são as Agências de Inteligência dos Estados). Não é necessário censurar uma mídia que está totalmente nas mãos de mega-empresários e políticos (coisas que se confundem) que monopolizam os meios de comunicação para manutenção do Sistema vigente. A única grande central de inteligência restante é a CIA (Central de Inteligência Americana) responsável por monitorar e intervir, quando preciso, nos governos e atividades de todas as nações do mundo.
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Os poucos meios que contestam e expõem uma visão diferente são permitidos sem grandes preocupações, cientes que estão os governantes da impenetrabilidade de suas idéias na grande população. São muito poucos os leitores de mídias alternativas, considerados irrelevantes.
Igualmente as pessoas que hoje lutam para construir qualquer realidade diversa da existente, onde não reine a exploração, a injustiça e o sangue, são facilmente desmoralizadas e deslegitimadas com expressões popularizadas, como “radical” – aquele que fala algo inútil e irrealizável, “comunista” – como simples termo pejorativo representando aquele que questiona a ordem vigente (algo impensável por todos) e outros tantos como “ingênuo” – aquele que não conhece a realidade, ou “idealista” – o que busca um ideal inalcançável.
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Cria-se dia a dia uma blindagem mental contra qualquer idéia que transgrida a ideologia do capital. Impõem-se todos os dias em todos os ambientes, desde a família, a escola, o emprego, a universidade, os amigos, a idéia de que o capitalismo “sempre foi e sempre será”, “é o único sistema realizável”, “é a única opção”. As idéias divergentes são totalmente desvirtuadas, distorcidas e transformadas em alvos fáceis para a lógica da exploração.
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O direito de escolha só é aplicável à mercadorias, produtos, bens, propriedades, meios de gerar mais-valia, formas de gerar riquezas que se concentrarão nas mãos de poucos e acentuarão as desigualdades. Não existe o direito a escolher nem sequer o próprio caminho, no entendimento amplo, coletivo e individual da palavra. As pessoas iludem-se achando que poder virar à direita ou à esquerda na rua é uma liberdade. Não sabem que enquanto povo, coletivo, é totalmente dominado, aprisionado e explorado por forças econômicas e políticas que escolhem seu destino. Não sabem que o indivíduo é completamente controlado e programado para ser uma máquina de produzir riqueza e consumir produtos. .
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Desconhecem-se idéias como “independência” real, de espírito, e não fictícia, financeira; “autodeterminação”, que é escolher o próprio caminho por si mesmo, sem delegar para nenhum ‘representante’; “autogestão” e “cooperação”, que é a capacidade de colaborar de um grupo, de uma classe ou de um povo sem que necessariamente queiram destruir uns aos outros; “solidariedade”, que é amar ao próximo incondicionalmente e desejar profundamente a sua liberdade, sabendo que a liberdade do outro é a condição para a própria liberdade.
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“Antes as paredes tinham ouvidos, hoje os ouvidos têm paredes”. Para quê gastar consideráveis recursos e empregar ostensivas energias em todo um aparato concreto, físico de censura que, apesar de toda a eficiência, não pode estar em todo lugar e censurar a absolutamente todos, se é muito mais fácil, prático e eficiente implantar tais mecanismos de censura diretamente nas mentes das pessoas?
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Afinal de contas, o “proibido” ainda tem uma penetração forte na psique humana, que possui um instinto de transgredir o imposto. Então, por que proibir que se fale, quando é mais fácil fazer com que não se escute? 'Deixe que os contestadores se esgoelem. Nunca serão ouvidos'. Um mecanismo tão apurado e desenvolvido que se torna incrivelmente difícil de perceber, pois externamente à esse processo de censura, há um bombardeio midiático e institucional (sejam instituições formais – escola, empresa, exército, ou informais – família, grupo de amigos, etc.) pregando Liberdade de Expressão, o grande “direito do homem”.
A Suprema Censura, a autocensura, que está em todo lugar com você, que vai para onde você vai, da qual não pode escapar, porque é Você o agente da censura, da ideologia dominante. Houve verdadeiramente uma “socialização” da censura, pois o que era antes externo, agora é interno. Uma das grandes armas (mas não a única) do sistema dominante para legitimar-se, para justificar o injustificável, a dominação do homem pelo homem.
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Na falta de argumentos, na impossibilidade de argumentar com idéias lógicas que comprovem que um homem é superior a outro (nefasta mentira) e, portanto, “pode e deve” dominar outro (absurda imposição), criam-se formas de legitimar tal dominação através da negação da essência humana, invertendo a ordem e usando como justificativa a própria realidade para se justificar. O mundo é injusto porque “já era injusto”. O homem domina os outros porque “já dominava”. Os argumentos se justificam a si mesmos, "inexiste uma origem da exploração" – já que “sempre foi” -, e por conseguinte, os exploradores tornam-se onipresentes na história, sem princípio e sem fim: acham-se, portanto, verdadeiros Deuses. Método aplicável a todas as situações de injustiça e crueldade.
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O pior de todos os mecanismos de defesa do Sistema é evitar, de todas as formas, que as pessoas sequer pensem a respeito, e, se pensarem, a censura é a responsável por manter a “ordem”. É o último recurso em termos de idéias, sabe por quê? Porque como são falsos os argumentos, é preciso uma venda que impeça a visão do absurdo dos argumentos. A única forma de eles seguirem justificando o injustificável é ninguém parar para questioná-los internamente, testar suas lógicas e validades.
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Os argumentos tornam-se paradigmas acobertados por outros paradigmas. A desigualdade se torna um paradigma amparado pelo paradigma da maldade natural do homem. A dominação se torna um paradigma amparado pelo paradigma da desordem natural dos homens. O individualismo irracional se torna um paradigma amparado pelo paradigma da impossibilidade de cooperar do homem. Mentiras e mais mentiras.
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Igualmente eficiente para afastar os olhos populares é a autocensura do pensamento que desestimula as pessoas a se interessarem por política. A programação interna da indiferença e a distância aparentemente intransponível entre os acontecimentos políticos e o cotidiano do indivíduo, fazendo parecer que a política e a vida pessoal nada têm em comum, afasta as pessoas de uma área que, para a classe detentora do poder, não os diz respeito.
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Se o homem fosse naturalmente mal, incapaz de se organizar ou cooperar, nunca em tempo algum ele teria ascendido à condição de espécie predominante, superando toda o reino animal, fisicamente mais forte e desenvolvida que ele. Apenas a inteligência e a capacidade de somar a isso a força do grupo puderam elevar o homem na natureza. Somente a igualdade conseguiu unir os primeiros homens para construir um mundo melhor para eles, sem todos os perigos do ambiente selvagem. Apenas a igualdade permitiu a comunicação, a partilha das descobertas que possibilitaram os avanços humanos.
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A dominação, a desigualdade, a injustiça, e a negação feita por todos dessa realidade desumana e cruel que vivemos, precisa ser vencida. Precisamos pensar, refletir, libertar nossos pensamentos para libertarmos-nos e libertarmos a todos do jugo da exploração. Precisamos ver nossa própria censura. Precisamos nos ver, construir nosso Eu baseados em nossa Humanidade. Precisamos buscar a vida, a paz, a justiça, a liberdade. Precisamos de um novo Eu para um Novo Mundo e precisa ser feito aqui e agora, por toda parte, por todos. Comecemos por nós.

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