segunda-feira, 16 de junho de 2008

Programa Anarquista - Errico Malatesta - Parte 2

2. Vias e meios

Até agora expusemos qual é o objetivo que queremos atingir, o ideal pelo qual lutamos.

Mas não basta desejar uma coisa: se se quer obtê-la, é preciso, sem dúvida, empregar os meios adaptativos à sua realização. E esses meios não são arbitrários: derivam necessariamente dos fins a que nos propomos e das circunstâncias nas quais lutamos. Enganando-nos na escolha dos meios, não alcançamos o objetivo contemplado, mas, ao contrário, afastamo-nos dele rumo a realidades freqüentes opostas, e que são a conseqüência natural e necessária aos métodos que empregamos. Quem se opõe a caminho e se engana de estrada, não vai aonde quer, mas aonde o conduz o caminho tomado.

É preciso dizer, portanto, quais são os meios que, segundo nossa opinião, conduzem ao nosso ideal, e que intencionamos empregar.

Nosso ideal não é daqueles cuja plena realização depende do indivíduo considerado de modo isolado. Trata-se de mudar o modo de viver em sociedade: estabelecer entre os homens relações de amor e solidariedade, realizar a plenitude do desenvolvimento material, moral e intelectual, não para o indivíduo isolado, não para os membros de certa classe ou de certo partido, mas para todos os seres humanos. Esta transformação não é medida que se possa impor pela força; deve surgir da consciência esclarecida de cada um, para se manifestar, de fato, pelo livre consentimento de todos.

Nossa primeira tarefa deve ser, portanto, persuadir as pessoas.

É necessário atrair a atenção dos homens para os males que sofrem, e para a possibilidade de destruí-los. É preciso que suscitemos em cada um a simpatia pelos sofrimentos alheios, e o vivo desejo pelo bem de todos.

A quem tem fome e frio, mostraremos que seria possível e fácil assegurar a todos a satisfação das necessidades materiais. A quem é oprimido e desprezado, diremos como se pode viver de modo feliz em uma sociedade de livres e iguais. A quem é atormentado pelo ódio e pelo rancor, indicaremos o caminho para encontrar o amor por seus semelhantes, a paz e a alegria do coração.

E quando tivermos obtido êxito em disseminar na alma dos homens o sentimento da revolta contra os males injustos e inevitáveis, dos quais se sofre na sociedade atual, e em fazer compreender quais são suas causas e como depende da vontade humana eliminá-las; quando tivermos inspirado o desejo vivo e ardente de transformar a sociedade para o bem de todos, então os convictos, por impulso próprio e pela persuasão daqueles que os precederam na convicção, se unirão, desejarão e poderão por em prática o ideal comum.

Seria – já o dissemos – absurdo e em contradição com nosso objetivo querer impor a liberdade, o amor entre os homens, o desenvolvimento integral de todas as faculdades humanas pela força. É preciso contar com a livre vontade dos outros, e a única coisa que podemos fazer é provocar a formação e a manifestação desta vontade. Mas seria da mesma forma absurdo e em contradição com nosso objetivo admitir que aqueles que não pensam como nós impedem-nos de realizar nossa vontade, visto que não os privamos do direito a uma liberdade igual à nossa.

Liberdade, portanto, para todos, de propagar e experimentar suas próprias idéias, sem outros limites senão os que resultam naturalmente da igual liberdade de todos.

Mas a isto se opõem, pela força brutal, os beneficiários dos privilégios atuais, que dominam e regulam toda a vida social presente.

Eles controlam todos os meios de produção: suprimem, assim, não somente a possibilidade de aplicar novas formas de vida social, o direito dos trabalhadores de viverem livremente de seu trabalho, mas também o próprio direito à existência. Obrigam os não-proprietários a se deixarem explorar e oprimir, se não quiserem morrer de fome.

Os privilegiados têm as polícias, as magistraturas, os exércitos, criados de propósito para defendê-los, e para perseguir, encarcerar, massacrar os oponentes.

Mesmo deixando de lado a experiência histórica, que nos demonstra que nunca uma classe privilegiada despojou-se, total ou parcialmente, de seus privilégios e que nunca um governo abandonou o poder sem ser obrigado a fazê-lo pela força, os fatos contemporâneos bastam para convencer quem quer que seja de que os governos e os burgueses procuram usar a força material para sua defesa, não somente contra a expropriação total, mas contra as mínimas reivindicações populares, e estão sempre prontos a recorrer às perseguições mais atrozes, aos massacres mais sangrentos.

Ao povo que quer se emancipar, só resta uma saída: opor violência a violência.

Disso resulta que devemos trabalhar para despertar nos oprimidos o vivo desejo de uma transformação radical da sociedade, e persuadi-los de que, unindo-se possuem a força de vencer. Devemos propagar nosso ideal e preparar as forças morais e materiais necessárias para vencer as forças inimigas e organizar a nova sociedade. Quando tivermos força suficiente, deveremos, aproveitando as circunstâncias favoráveis que se produzirão, ou que nós mesmos provocaremos, fazer a revolução social: derrubar pela força o governo, expropriar pela força os proprietários, tornar comuns os meios de subsistência e de produção, e impedir que novos governantes venham impor sua vontade e opor-se à reorganização social, feita diretamente pelos interessados.

Tudo isso é, entretanto, menos simples do que parece à primeira vista. Relacionamo-nos com os homens tais como são na sociedade atual, em condições morais e materiais muito desfavoráveis; e nos enganaríamos ao pensar que a propaganda é suficiente para elevá-los ao nível de desenvolvimento intelectual e moral necessário à realização de nosso ideal.

Entre o homem e a ambiência social há uma ação recíproca. Os homens fazem a sociedade tal como é, e a sociedade faz os homens tais como são, resultando disso um tipo de círculo vicioso: para transformar a sociedade é preciso transformar os homens, e para transformar os homens é preciso transformar a sociedade.

A miséria embrutece o homem e, para destruir a miséria, é preciso que os homens possuam a consciência e a vontade. A escravidão ensina os homens a serem servis, e para se libertar da escravidão é preciso homens que aspirem à liberdade. A ignorância faz com que os homens não conheçam as causas de seus males e não saibam remediar esta situação; para destruir a ignorância, seria necessário que os homens tivessem tempo e meios de se instruírem.
O governo habitua as pessoas a sofrerem a lei e a crerem que ela é necessária à sociedade; para abolir o governo é preciso que os homens estejam persuadidos da inutilidade e da nocividade dele.

Como sair deste impasse?

Felizmente, a sociedade atual não foi formada pela clara vontade de uma classe dominante que teria sabido reduzir todos os dominados ao estado de instrumentos passivos, inconscientes de seus interesses. A sociedade atual é a resultante de mil lutas intestinas, de mil fatores naturais e humanos, agindo ao acaso, sem direção consciente; enfim, não há nenhuma divisão clara, absoluta, entre indivíduos, nem entre classes.

As variedades das condições materiais são infinitas; infinitos os graus de desenvolvimento moral e intelectual. É até mesmo muito raro que a função de cada um na sociedade corresponda às suas faculdades e às suas aspirações. Com freqüência, homens caem em condições inferiores àquelas que eram as suas; outros, por circunstâncias particularmente favoráveis, conseguem elevar-se acima do nível em que nasceram. Uma parte considerável do proletariado já conseguiu sair do estado de miséria absoluta, embrutecedora, a que nunca deveria ter sido reduzido. Nenhum trabalhador, ou quase nenhum, encontra-se em estado de inconsciência completa, de aquiescência total às condições criadas pelos patrões. E as próprias instituições, que são produtos da história, contêm contradições orgânicas que são como germes letais, cujo desenvolvimento traz a dissolução da estrutura social e a necessidade de sua transformação.

Assim, a possibilidade de progresso existe. Mas não a possibilidade de conduzir, somente pela propaganda, todos os homens ao nível necessário para que possamos realizar a anarquia, sem uma transformação gradual prévia do meio.

O progresso deve caminhar simultânea e paralelamente entre os indivíduos e no meio social. Devemos aproveitar todos os meios, todas as possibilidades, todas as ocasiões que o meio atual nos deixa para agir sobre os homens e desenvolver sua consciência e suas aspirações. Devemos utilizar todos os progressos realizados na consciência dos homens para levá-los a reclamar e a impor as maiores transformações sociais hoje possíveis, ou aquelas que melhor servirão para abrir caminho a progressos ulteriores.

Não devemos somente esperar poder realizar a anarquia; e, enquanto esperamos, limitar-nos à propaganda pura e simples. Se agirmos assim, teremos, em breve, esgotado nosso campo de ação. Teremos convencido, sem dúvida, todos aqueles a que as circunstâncias do meio atual tornam suscetíveis de compreender e aceitar nossas idéias, todavia, nossa propaganda ulterior permaneceria estéril. E, mesmo que as transformações do meio elevassem novas camadas populares à possibilidade de conceber novas idéias, isto aconteceria sem nosso trabalho, e mesmo contra, em prejuízo, como conseqüência, de nossas idéias.

Devemos fazer com que o povo, em sua totalidade e em suas diferentes frações, exija, imponha e realize, ele próprio, todas as melhorias, todas as liberdades que deseja, na medida em que concebe a necessidade disso e que adquire a força para impô-las. Assim, propagando sempre nosso programa integral e lutando de forma incessante por sua completa realização, devemos incitar o povo a reivindicar e impor cada vez mais, até que ele consiga a sua emancipação definitiva.

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