quarta-feira, 5 de março de 2008

O sangue que corre nas ruas reflete-se nos espelhos celestes...


“Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.
(...)
Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.”

Bertolt Brecht


O Céu daquela Terra


Ó Céu, não vês quão injusta é esta terra?
Por que há homens que comem e outros não?
Céu, conte-me por que alguns subiram à ti,
Em suaves aviões, e como tu, são tão indiferentes
Perante àqueles que nunca te alcançarão.

Conte-me, pois há muitos erros nestas pradarias
Que estão distantes demais de tua infinitude azul;
E parece que não vês.

Vejo com meus dois olhos distantes um do outro
Quão distantes estão as realidades;
Com um, vejo barrigas estufadas e fartas de comer,
Co’outro, vislumbro a chorosa visão d’algumas
Tão contraídas, que são umbigos deformados.

Ah, Céu, sob teu surpreendente azul,
Há um mar tão vermelho, vermelho sangue,
De sangue de gente, de homens e mulheres;
Também há mares de vermelhos outros,
De carros rubros, vinhos e sedas carmesim;
E porque há estes contrastes tão vazios e tristes?
Porque ninguém se incomoda com o sangue?

Ah, Céu, acho que tua divindade nos contaminou,
E como tu, nos tornamos uma imensa humanidade -
Vazia – Imensa massa humana, animais urbanos,
Ricos de verdes notas, pobre de folhas verdes;
Como tu, somos grandes demais para nos preocupar
Com a terra. Ela não importa, quando há firmamento
Ainda por contemplar e viajar.

Ah, infame Céu, largaste-nos neste abismo
Territórios destruídos, buracos de explosão,
Ruína humana, restos de escombros e pernas,
E braços e corpos mutilados.
De ti, ó Céu, os mesmos aviões que não nos vêem,
Lançaram a morte sobre nós, e os povos da terra
Choraram perante o grande cogumelo branco,
O calor dos projéteis, a raiva do urânio.

Ah, Céu, enquanto tu chovia, talvez chorava
Lágrimas falsas, tentativa de esconder as chamas,
Um raquítico menino também chorava,
Porque eu estava comendo tanta comida
E ele nunca tinha visto tanto.

É, distante Céu, rarefeito anil de distâncias,
Estamos sós neste mundo de homens,
Muitos e solitários,
Fartos e famintos,
Entediados e desgraçados.
Não quero mais voar, enquanto aquela outra
Criança não anda por falta de forças,
E não quero mais tua beleza,
Porque uns belos olhos negros foram
Incinerados.

Ah, Céu, há também teu amor,
Amor quente do sol, amor calmo da lua,
Cujas barrigas minguadas e rostos abaixados
Nunca viram.
Este amor não é para os demais,
Apenas aqueles que, já tendo tudo,
Podem então começar a amar.

Minha boca está agora seca,
Foi a água de meu corpo embora
Em lágrimas
Destes meus olhos tristes que pararam
De olhar pra ti, e olharam para o mundo.

Ah, Céu. Anoiteça e não mais apareça,
Enegreça-te e te tornes preto como as peles
Queimadas pelo evolutivo fogo;
Negro como as cinzas dos derrotados;
Sombrio como a pólvora nas carnes.
Adentre em nossas almas, ó Céu,
E não veja nada, onde não há vida.

A vida foi embora no último automóvel
Vermelho que saiu da fábrica de pobreza,
Foi embora naquele navio gigante
Em mar de pedintes,
Foi embora, quando um homem virou menos
Que um homem, perante outro.
Céu, noturno, humano,
Céu, Diurno, tirano.
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