As Duas Cidades
Naqueles tempos marcados pelo progresso e pelo regresso, luz e escuridão, força e fraqueza, todos os homens viviam n´uma montanha íngreme, muito alta, cujo pico, repleto de torres e edifícios vistosos, era muito apertado, pequeno, mas a medida que se descia pela encosta, ela se alargava mais e mais, cheia de buracos, cavernas, saliências e deformidades faveladas. A produção de todo o necessário a esses homens era feita na parte média da montanha, cujas inúmeras fábricas eram abastecidas pelos braços do gentio do Sul (como eles chamavam a base da Montanha) e pelos recursos naturais da abundante base rochosa e bruta, tudo rigorosamente supervisionado pelos frutos das Fortalezas Acadêmicas do Norte (assim conhecido, o topo), de onde saiam doutores de tudo.
A plebe e sua cultura (considerada) rústica (segundo os doutores de tudo) contava em suas histórias folclóricas da existência de duas Cidades onde se dividiam os homens. Os homens do progresso e os do regresso, em lados diferentes, bastante desiguais em altura, separados por um grande abismo por sobre o qual havia apenas uma única ponte, que só o progresso foi capaz de construir, e portanto, a esses homens cabia o controle. Pela estreita ponte se dava o contato entre as duas Cidades, uma relação bastante injusta, diziam muitos. Os nebulosos, como se autodenominavam os moradores das Torres das Nuvens, devido às alturas celestes, zombavam dessas “crendices populares”, comentando em suas rodas as graças da simplória história, seus absurdos e fantasias. Diziam quão tolo era essa idéia de apenas uma ponte controlada por um único lado, riam dos contrastes, segundo eles, aviltantes, que havia entre os homens da história. Tal contraste quebra a estética artística de uma obra, da literatura, observavam.
Mas entre as famílias dos homens do Sul, as crianças dormiam ouvindo as histórias passadas entre as duas Cidades. Elas brincavam inventando aventuras entre as Cidades, transformavam um beco imundo perto de casa ‘na ponte’ e lá viviam suas estórias.
Nesta montanha, onde os poucos nebulosos apertavam-se em suas torres distantes, desfrutavam dos prazeres abundantes produzidos nas fábricas incontáveis, invejavam-se e brigavam uns com os outros, por acharem sua soberba insuficiente, despejando as sobras e os dejetos rochedo abaixo, e onde o restante dos homens carregavam com seus cansados braços o peso de todas as pedras de seus trabalhos, obrigações, faltas e escassez, sujeira e tristeza, havia uma desolação que a muitos matava, pois os que trabalhavam não suportavam tanto, e os outros, não suportavam o próprio vazio.
Diz-se que certo dia, quando os nebulosos ordenaram aumentar a exploração das vísceras da montanha, para produzirem e consumirem mais, mandaram com punhos de ferro que mais ferro fosse tirado das minas para fabricação de latas onde todos os prazeres se guardavam, a Montanha rugiu sua impaciência com aquelas criaturas que a perfuravam impiedosamente e cuspiu fogo para todos os lados, Norte, Sul, acima, abaixo, matando primeiro os de baixo, que sofreram logo o calor das chamas, depois os de cima, que perderam suas fontes de mercadorias e luxos.
Antes da tragédia que apagou aqueles seres da face da rocha, algumas crianças já espalhavam que um velho sábio das ruas, barbudo e contador de histórias, disse que o abismo que separava as duas Cidades gritaria o fogo da exploração e derrubaria a cruenta ponte, para depois lançar ondas silenciadoras de vida sobre ambos os lados, antes a cidade do regresso, imensa aglomeração, porém situada na menor altitude, para em seguida engolir o progresso, perdido nas alturas.
Naquela desigualdade dita natural por todos, afinal, o abismo, esta "força da natureza", separava encostas distintas, a morte não fez diferenças e a todos levou. Se tivessem entendido melhor esse absurdo de abismo, será que poderiam ter-lhe contido as chamas e preservado a vida?
terça-feira, 25 de março de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário